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segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Touché, Aramis! – artigo de Cláudio Ribeiro

 
A tarde de sábado se deitava nos meus olhos quando recebo o telefonema da minha amiga Selma. Ela, de alguma maneira, sacode minha preguiça espantando o friozinho (bem típico curitibano) destas brisas de novembro que escorre lentamente com a fuga da hora entregando a noite primaveril.

Como borboletas que fazem cócegas em meu nariz, Selma Lança um desafio: castiga a brisa do tempo trazendo o embriagador perfume de jasmim fazendo por um instante eu ter saudade de mim.

– Preciso de um texto seu sobre Aramis Millarch!

A palavra exata é aquela que se cerca de todo sentimento: saudade.

Aramis não viveu uma vida única, mas diversas vidas. Porque,  aqui e ali, foi acumulando e ampliando sua experiência  pessoal, acrescida da experiência de cada um de seus semelhantes, principalmente dos amigos e pessoas que admirou e amou..

Ele poderia ser considerado um desses jornalistas estranhos do mundo da cultura. Referencial para a nascente fase do jornalismo cultural, sua obra é moderna e fora dos padrões de sua época, sendo fonte inesgotável do jornalismo cultural brasileiro.

Cultura é um conceito extremamente amplo e complexo. Porém, se aplicado a dimensões particulares dos fazeres, dos hábitos e do comportamento humano, pode tornar-se relativamente simples, muito embora essa simplicidade possa não vir a ser compreendida com facilidade.

Aramis lia e escrevia sobre tudo principalmente suas grandes paixões: música e cinema. Movido por verdadeira obsessão pela informação dos fazeres artísticos daqui e do mundo, ele ia colocando aqui e ali seu farto material. Livros, discos, revistas, cartas, recortes de jornais e fitas. Muitas fitas de gravador.

Em 1975, garoto ainda, tinha eu 22 anos, atendendo ao seu convite fui procura-lo no DNER. Escondido por trás de sua velha Remington de ferro e uma pilha formidável de papéis encontrei o passarinho sonhador. Por alguns instantes parou de batucar com seus dedos redondos e curtos cuja agilidade causou-me espanto e, mais perplexo ainda fiquei quando ao estender a mão para o devido cumprimento, recebo, em troca, uma naco do pão com mortadela que comia.

Ficamos amigos.

E eu, admirador de uma figura fabulosa, extremamente amorosa, que sabia como ninguém costurar os fatos e conhecer os desdobramentos, tecendo um mosaico em seu espaço diário no jornal, utilizando sua linguagem tanto na intenção objetiva de informação, como na intenção poética. Em curto espaço, tal como poeta, Aramis conseguia esculpir um resumo de sua visão da arte e do mundo e transmiti-las aos leitores da cidade que amava. Como anfitrião mor de Curitiba, não havia um único nome da cultura brasileira, de qualquer manifestação, seja cinema, música, teatro ou literatura que Aramis não se transformasse em cicerone.

O dia era muito curto para ele. Levando a vida de boêmio, acordava lá pelas 10 horas, fazia algumas ligações e ia para o estúdio que fora construído a toque de caixa pela absoluta falta de espaço em sua casa (que o  digam Marilene e Francisco) para acomodar o imenso  material: discos, fitas, filmes, depoimentos, recortes de jornais, fotografias, cartazes, revistas. Possuidor de uma capacidade formidável  de produção, Aramis ficava trabalhando até por volta das duas ou três horas da manhã. E lá, na Rua 24 de Maio, em 1980, nasceu o Estúdio Vinícius de Moraes.

Constantemente convidado para fazer parte como jurado em festivais de música por todo o Brasil, consolidava seu prestígio por todos os cantos. Vez ou outra, quando havia algum impedimento para sua presença em alguns desses eventos, Aramis gentilmente fazia-me o convite para representa-lo, o que na certa era uma honraria danada.

Entre 76 e 86 andávamos juntos, quase que diariamente. Não era raro, ao terminar o programa Cidade de Olhos Abertos que eu produzia e apresentava na Rádio Cidade, já de madrugada, lá estava o Aramis pronto para arrastar-me ao Bar Palácio, ponto de papo, estórias e porres com este verdadeiro dono das ruas e das noites de Curitiba. Vamos muitas noite, em companhia de muitos de seus amigos que aqui vinham: meus parceiros – Cartola e Claudionor Cruz; J.C. Botezelli (Pelão), Carlos Lira, Sebastião Tapajós, Vinicius de Moraes, Toquinho, Elizete Cardoso, Carmem Costa, Elis Regina, Ricardo Cravo Albin. Aramis feito passarinho batia suas asas  bar em bar em Curitiba, cidade que já viveu noites sem fim.

O polaco Paulo Leminski dizia que o Rio era o Mar e Curitiba, o bar.

Muita música já rolou nas noites e nos bares de Curitiba. Desde o início do século passado se tem notícias de sons que flutuam no ar, invadindo as madrugadas frias de nossa capital. Pedacinhos dessa história, Aramis registrou em sua coluna diária.

À maneira de Aramis posso perguntar: você já imaginou que já passou por aqui Noel de Medeiros Rosa, o grande poeta da Vila Isabel? É possível, por que não, que ele tenha até se apaixonado por uma das meninas da difícil vida fácil da Curitiba dos tempos do bonde, muito antes da “Eddy” e da “Maria Guilhermina”, do Quatro Bicos, Curitiba lá pela década de trinta, a caminho ou no  regresso de Porto Alegre.

Francisco Alves, o grande Rei da Voz, Orlando Silva, o Canto das Multidões, as irmãs Batista, Carlos Galhardo, Ataulfo Alves e tantos outros.

Como sempre acontece, depois das apresentações, músicos se misturam, se cruzam, se unem para reverenciar a divina e amada música numa mesa de bar!

Passou por aqui, em 1921, abril daquele ano, um desconhecido “Zé Vicente”, pseudônimo de sabor sertanejo do grande e insuperável Alfredo da Rocha Vianna Filho, São Pixinguinha. Desde os tempos do Grupo Caxangá havia o hábito de mudar os nomes dos músicos. O famoso conjunto Oito Batutas, com estes apelidos se exibiu no Teatro Variedade e no Cinema Mignon, aliás como indica a nota publicada no Diário da Tarde, edição de abril de 1921.

Alguns juram que, depois das apresentações, músicas que acabariam entrando na história musical brasileira como Pixinguinha (flauta), Otávio Viana, irmão de Pixinguinha (violão e voz), João Pernambuco, o grande compositor (violão e voz), Donga, o do Pelo Telefone (violão), Nelson Alves (cavaquinho), Jacob Palmieri (pandeiro), João Thomas (reco-reco) e José Medeiros (ganzá), componentes do Grupo Oito Batutas, saíam pelas noites de Curitiba.

Visitas lá pelo Burro Bravo no Bacacheri e depois as esticadas musicais etilicamente aquecidas. Era o Bar da Curitiba sem Mar!

Eu confesso! Tenho saudade do Aramis e com ele dos tempos do Cirandeiro, da Velha Adega do amigo Tatára, Bebedouro, no Largo da Ordem, Si Bemol. Ainda frequentamos  o Hermes para ouvir a canja de artistas  talentosos, o Nilo Samba Choro e aquela pá de cobras criadas, Kapelli de quem sou cavaleiro, da minha amiga Mara, o saudoso Bar do Cardoso, poetinha maior.

Falando em passarinho, estou na janela de minha casa contemplando a tarde de sol tímido, depois de dias de chuva. Chuva sem parar. Penso que São Pedro abriu todas as torneiras lá do céu e dê-lhe chuva. Como tenho a sorte de morar em uma chácara, sou rodeado de árvores das mais variadas espécies e cores. Ipês, Marmelos, Canelas, Jabuticabeiras, Pinheiros, Ameixeiras. Umas tantas que em verdade não sei que nome terão e,  como a paisagem é bela, tratei de nominar as árvores com nomes da Música Popular Brasileira, assim como fez Aramis em seu Estúdio. Galeria Hermínio Bello de Carvalho (meu amigo e um dos maiores letristas do Brasil e que de início não aceitou o convite de Aramis para participar da recém-criada Associação Brasileira de Críticos e Pesquisadores da Música Brasileira) , Portal Dina Sfat, Rua Elton Medeiro, e outros tantos logradouros.

O espadachim Aramis Millarch que não era gordo, e sim a soma de Dartagnan, Athos e Prothos, ffez isto: nos trouxe, em forma de mosaico a paisagem da cultura brasileira. Mais do que percorrer estas paisagens como passarinho entre árvores, teve a capacidade de se misturar a elas, de absorver seu cheiro e suas cores, ele mesmo com o tempo tornou-se um mosaico, reunindo, em sua obra de jornalista cultural, o traço histórico da sensibilidade e criatividade brasileira.

E, ao atender o pedido da professora e amiga Selma, escrevo pensando nos novos sonhadores colegas jornalistas ligado a ao mundo da cultura, tal como o mosqueteiro Aramis, que com carinho e cuidado, foi ajuntando e divulgando o talento de artistas tantos, que eles somem seu brilho ao brilho de tantos agentes culturais; que eles sejam capazes de fazer da arte e da cultura uma linguagem de beleza, de magia, e de encantamento para todos nós, como fazia Aramis Millarch.

Touché!

Cláudio Ribeiro

Jornalista – Compositor – Editor-chefe do Portal Brasil Cultura, Rádio Sol Maior e do Programa Almoço à Brasileira da Rádio Cidade de Curitiba.

TEIXEIRA, Selma Suely (org. Jornalismo Cultural: um resgate. v.1. Curitiba: Gramopfone, 2007.

Fonte: Portal BRASIL CULTURA

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