No prefácio do livro Contos Tradicionais do Brasil, Luís da Câmara Cascudo refere o mais antigo conto que se conhece. É uma história do escriba Anana, para o príncipe Seti Merneftá, filho do faraó Ramsés Miamum, escrita há três mil e duzentos anos.
Por Ronaldo Correia de Brito
Cascudo preocupa-se em garantir a veracidade do papiro egípcio, encontrado na Itália em 1852, e informa que o rudimento de livro para criança é um conto popular com os enredos próprios da época dos faraós, mas que também vivem nas histórias tradicionais do Brasil, apesar do tempo e da distância que os separam.
Cascudo observa que o registro das narrativas orais tem recebido menos atenção que o da poesia popular. Insiste na importância do conto popular tradicional como formador de uma memória emocional, social e antropológica. Segundo ele: “O conto é um vértice de ângulo dessa memória e dessa imaginação. A memória conserva os traços gerais, esquematizadores, o arcabouço do edifício. A imaginação modifica, ampliando pela assimilação, enxertias ou abandonos de pormenores, certos aspectos da narrativa”.
O erudito ensaio de Cascudo vale, sobretudo, por chamar atenção para o processo de construção da narrativa: a memória como arcabouço estruturante e a imaginação com seus acréscimos e transformações. Essa teoria em parte está contida em Walter Benjamin, quando ele identifica dois tipos de narradores que se complementam: O viajante, que vive a experiência lá fora no mundo, ouve histórias em suas andanças e, ao retornar à pátria, conta o que viveu, viu e ouviu. O segundo tipo de narrador é o sedentário, aquele que sem nunca sair de sua aldeia natal ouve as histórias e as experiências dos viajantes e, enquanto trabalha ou caminha, reelabora o que ouviu, subtrai, acrescenta, enxerta cores, sons, vocábulos e expressões locais e assim cria uma nova história.
O narrador sedentário reinventa formas e significados, poesia e símbolos; enxerga os ossos do que é narrado, dissecando músculos, gorduras e pele e construindo um novo corpo narrativo.
Jean-Claude Carrière, no prefácio de O Círculo dos Mentirosos, contos filosóficos do mundo inteiro, faz uma curiosa observação sobre os narradores judeus, para quem o ato de narrar é tão importante quanto a própria história. Segundo ele, “a tradição judaica pressupõe muitas vezes a existência por trás das palavras, da ordem das palavras e do próprio lugar que ocupam as letras, de uma espécie de estrutura secreta, uma mensagem colocada ali por não se sabe quem, um outro significado, o verdadeiro, como se a aparência do conto não passasse de uma máscara”.
É importante lembrar que a psicanálise fundada por um judeu, Sigmund Freud, buscou nos mitos seus significados mais secretos. Freud analisou histórias em que as civilizações se narram. Da análise dessas histórias coletivas, como a do rei Édipo, que foi reescrita por Sófocles, ele parte para a experiência da análise individual, um método em que a pessoa se narra sozinha, buscando verdades e significados que transcendem o aparente.
A importância dessas histórias que acompanham o homem desde que ele conseguiu juntar palavras em frases e frases em narrativas mais longas é narrá-lo tanto coletivamente como individualmente. No mesmo prefácio do Círculo de Mentirosos Jean- Claude Carrière relata que perguntou certa vez ao neurologista Oliver Sacks o que, a seu ver, era um homem normal. Depois de hesitar um pouco o neurologista respondeu “que um homem normal talvez fosse aquele capaz de contar a sua própria história”. E acrescenta que esse homem narrador “sabe de onde vem (tem uma origem, um passado, uma memória em ordem), sabe onde está (sua identidade) e acredita saber aonde vai (ele tem projetos e a morte no fim). Portanto, ele se situa no movimento de um relato, ele é uma história e ele pode se narrar. Caso esta relação indivíduo-história venha a se romper, por qualquer razão fisiológica ou mental, eis aí o relato partido, a história perdida, a pessoa projetada para fora do tempo. Ela não sabe mais nada, nem o que ela é, nem o que deve fazer. Ela se agarra a algumas aparências da existência. O indivíduo, aos olhos do médico, surge à deriva: “Ainda que seus mecanismos corporais funcionem, ele se perde no meio do caminho, não existe mais”.
Muito cedo me dediquei à investigação das narrativas de tradição oral e a uma coleta não sistemática de histórias, preocupado em construir uma escrita pessoal. Mais tarde, com alguns livros de ficção publicados e vários espetáculos teatrais encenados, passei a conviver com alunos de escolas públicas e particulares e a observar as dificuldades que eles tinham para desenvolver uma leitura, uma fala e uma escrita. Sobretudo nas escolas públicas, com crianças e jovens das populações chamadas de risco, esse travamento era mais evidente. A maior parte deles era incapaz de compreender e interpretar o que lia, quando sabia ler, e, o mais grave, não conseguia elaborar fios narrativos. Como médico clínico de serviços de psiquiatria para crianças e adolescentes, sei que a incoerência e fragmentação do discurso ou fala se justificam por doenças como esquizofrenia ou demência. Mas, entre jovens considerados normais, o que poderia causar essa dificuldade? Por que avançamos tão pouco na educação, mesmo quando anunciam progressos econômicos, com um aumento do consumo e do poder de compra?
Apropriando-se de contos que pertencem a todos, os jovens sem individualidade-história podem ser ajudados a se inventarem, a criar a própria história. Como é possível que alguém não consiga narrar-se, alegando que não possui uma história? O patrimônio de narrativas acumulado em milhares de anos é nossa história, ele pode ser sacado a qualquer momento, como um mágico saca um coelho de dentro de uma cartola. Somos um país predominantemente oral. No Brasil, uma das maneiras mais usuais de transmissão do conhecimento ainda é a fala, como se tivéssemos uma natural desconfiança da escrita, como se ela não se bastasse por si mesma e necessitasse do reforço da oralidade. Se analisarmos a maneira como o acervo de contos de tradição oral serviu de arcabouço para a literatura de povos de várias partes do planeta, talvez cheguemos a um método educativo que nos ajude a reverter os problemas de aprendizado da leitura e da escrita.
*Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor
Fonte: Blog do autor
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