Postagem em destaque

FIQUEM LIGADOS! TODOS OS SÁBADOS NA RÁDIO AGRESTE FM - NOVA CRUZ-RN - 107.5 - DAS 19 HORAS ÁS 19 E 30: PROGRAMA 30 MINUTOS COM CULTURA" - PROMOÇÃO CENTRO POTIGUAR DE CULTURA - CPC-RN

Fiquem ligados nas ondas da Rádio Agreste FM - 107.5 - NOVA CRUZ, RIO GRANDE DO NORTE, todos os sábados: Programa "30 MINUTOS COM CULTU...

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Chama sem pavio: uma história de quem não se cansa da rebeldia – Por Lorena Alves

lorenatexto

Lembro das aulas do meu ensino fundamental. Sinto saudade daqueles intervalos, ou recreios – como alguns chamam – em que cantava Titãs com as minhas amigas. Hoje, na faculdade, ainda canto a música “Televisão”, na voz da mesma banda que fez muito sucesso na cena do rock nacional. No fusca do meu pai também cantávamos aqueles versos: “Que tudo que a antena captar meu coração captura”, essa lembrança fará mais sentido daqui algumas linhas. No caminho para escola esboçava algumas ideias para o futuro e sempre com uma música na cabeça.
Parece que eu tinha tempo para pensar um pouco mais nos pequenos prazeres da vida. Na volta do colégio eu só me preocupava com o almoço e em ler um SMS amoroso… Mais tempo ou um tempo aproveitado de maneira diferente do que tenho hoje. A música “Comida”, da banda ícone dos anos 80 e dos meus 12, 13, 14, 15, opa, 18 anos, fazem cada vez mais sentido. Sigo querendo a vida como ela é. Não quero só dinheiro, mas agora de fato preciso de dinheiro. “A gente quer inteiro e não pela metade” eu cantava esse verso, analisava, entendia, mas não sentia como hoje sinto: como membro da família Vital, que luta para ter mais que o mínimo – desejo, necessidade, vontade. Nada com comodismo, nada com tempo de sobra. O capitalismo nos tirou quase tudo. A força não há quem tire.
Meus pais, eu e minhas irmãs, não passamos um dia sem bater de cara com as dificuldades de sermos pobres e desempregados. Um dos sonhos que martela em nossas cabeças é de passarmos do passo da necessidade para pensar na vontade e desejo. A situação financeira causa uma preocupação em outras proporções comparada com as de entregar um trabalho acadêmico, por exemplo. O medo dos meus pais é de faltar comida e dinheiro para manter as filhas estudando. Pensar nas necessidades é sobre chegar em casa e ouvir que seu pai está com os braços doendo do peso que carregou o dia todo para pagar um boleto no fim do dia. É saber que todo o trabalho braçal parece sem fim. É ouvir da mãe que o dinheiro tem um valor maior do que eu realmente imaginava que tinha enquanto voltava para casa nos brilhos dos meus 12 anos.
Às vezes minha bolha, nas redes sociais, fala que temos que aproveitar para viajar, tirar um tempo para descansar e não fazer necessariamente uma faculdade ou trabalhar. Aqui, na casa da família Vital, é preciso trabalhar o mais cedo que puder e correr para juntar um dinheirinho para comprar, por exemplo, uma máquina de lavar que não faça sua mãe sofrer tanto com as dores nas mãos e nos ombros.
Trabalhar, muitas vezes, significa ter o mínimo para minimizar as dores. Cresci tendo como inspiração quem rala duro. Mas não tendo a meritocracia como princípio, e sim a rebeldia. Ser rebelde é lutar pelo justo, é por vezes andar com a cara de cansaço e de repente dar um sorriso para fugir da cara da fome. Quando paramos para analisar em que pé estamos, veremos algumas cenas de felicidade: uma filha formada, um pão a mais na mesa, um elogio pela limpeza da máquina do companheiro de trabalho. Não enxergo a minha família como um elemento único, mas membro de uma série em cadeia de muitas famílias com os mesmos problemas que a nossa. O pobre não é único e não se pode dar ao luxo de pensar em ser. O rico quer um tempo para ele, enquanto o capitalismo afeta o tempo de quem não tem tempo para pensar no que se perde, mas reproduz um sistema que não quer saber da massa e sim do que a massa produz.
“Os sonhos não envelhecem”, como disse Milton Nascimento. Concordo que eles não envelhecem, porém eles se transfiguram, são adiados, reinventados, até chegar a cada pequena vitória. O sorriso do meu pai, admirado pela dedicação das filhas aos estudos é um sonho não envelhecido, tão pouco finalizado. O sonho é a continuação da persistência de um mundo mais justo e igualitário.
Nossa mãe, minha, de Catarina e Rafaela, sorri ao ver a caçula chegar da escola com a camiseta da UBES, e falar que conseguiu montar o grêmio no colégio. Eu sorri ao ver minha irmã, secundarista, tendo a consciência da responsabilidade de ser uma delegada representando a escola da periferia de Osasco. Rafaela, nossa irmã mais velha, entregou o TCC essa semana, com os olhos cheios de lágrimas deu a notícia hoje para o nosso velho: ela foi aprovada na faculdade. Rafa será a professora de História, marxista da quebrada, ainda mais querida pelos alunos, não só do cursinho popular que leciona atualmente.
Bem, eu, sigo acreditando no movimento estudantil e em suas reconfigurações. Tem gente que não vê significado em um centro acadêmico, diretório, DCE… Há quem ache que nada muda. Há quem acredite que ninguém faz nada para mudar. Eu acredito que a força de um estudante ultrapassa qualquer descrença e ausência de apoio. A batalha é mais árdua, mas não é impossível. Ser combativo é um desafio necessário.
Nem toda essa história deslumbrada pelos movimentos sociais e estudantis pode fazer sentido para quem está lendo. Essas linhas contam uma versão de uma identificação com a luta pela unidade popular.
Atualmente quando eu volto do serviço, no trem lotado, percebo que estou sempre ligada as minhas memórias e bandeiras. Ir a um ato para quem é da periferia, com as nossas pautas, tem um significado muito maior do que para o rico de esquerda que não teve dificuldade alguma para se locomover para o centro, onde a manifestação costuma ser realizada. Aqui, a gente costuma comemorar quando o ato é na viela de cima, quando a reunião feminista é na casa da colega da favela e torcemos para que os companheiros do centro da cidade consigam nos visitar, aliás, são forças que se somam. Às vezes parece que a esquerda dos ricos nem sempre se preocupa em ajudar quem não consegue se deslocar, mas tem sua presença confirmada em todas as manifestações no centro da cidade. Às vezes é apenas uma disputa de ego entre as turmas para ver quem grita mais. Nossa bandeira é hasteada cada dia em todos os momentos que exigem sermos quem somos. A vida nos exige mais do que disputa por imagem. Somos a própria disputa por narrativa.
Necessidade é a palavra. Lembro da minha aula de História no oitavo ano, uma sala de 44 estudantes, em que analisamos a música “Comida”, da banda Titãs. O que me reafirmo cada dia mais é que, assim como na letra da canção, sigo querendo o inteiro e não a metade. Nossa família quer o direito de ter vontade. O direito a falar que quer tirar um ano para descansar das condições desumanas de trabalho. Queremos ter a “ousadia” de poder falar que trabalhamos em situações precárias e exigir o mínimo de como tem que ser.
Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? Você tem medo de quê?
O meu único medo é de morrer calada e sem memória. Comecei a estudar jornalismo há um ano e uma das primeiras coisas que me falaram é que jornalista não transforma o mundo. Talvez a gente não consiga mesmo transformá-lo, porém podemos encorajar quem lê, escuta, assiste… A provar um pouco de novos (velhos) mundos.
Ser comunicador é sentir e pensar mais no outro do que em você. Ocupar espaços e resistir na comunicação é contato, por o pé na rua e olhar na cara de quem está entrevistando. Há quem extrapole nisso e há quem se esqueça do outro por simples escolha. Colocar o rico na favela com algumas linhas é difícil, porque nada substitui o pé no baile funk, a sensação de dormir numa ocupação ou soltar pipa na laje. Não escrevemos para gaveta, escrever é um dos atos de pensar que o próximo pode querer vivenciar aquilo e lutar por transformação.
A gente não quer só o pão na mesa, a gente quer a vida de escolhas que os outros dizem por aí. A gente quer o passe livre para ter o acesso à cultura que os outros dizem por aí. Queremos frequentar o centro da inspiração, da criatividade, do teatro, que mostram as fotos por aí. A gente quer viver o que vê. Queremos ser o que dizemos que queremos ser.
O capitalismo minimiza o ser humano. Reduz suas habilidades e pressiona o que há de melhor em você. A resistência é diária e precisa da força de cada militante. Há dias que você se cansa e quer fugir. Há dias que você quer gritar e responder a altura dos absurdos que são direcionados a você. Há dias que o cansaço te puxa e quase convence que as coisas que você faz não valem à pena. A luta é diária e presente. Ela nunca pensa em sumir e sair de quem tem um coração rebelde pelo justo e popular.
Temos que ter mais tempo não só para os descansos dos ricos, mas para intervir na briga “de marido e mulher”, no corredor que separa a minha casa e da família Baptista. Batalhamos para dormir razoavelmente melhor, para sorrir mais e bufar menos no dia seguinte. Luto para arranjar um tempo, com menos caos, para escrever essas linhas. Ser estudante pobre é resistir dentro e fora da universidade. A antena capta informações, o jornalista captura histórias, mas meu coração e toda família Vital capturaram muito antes qualquer tipo de sensação que finge incorporar nos programas de sensibilização barata. Não precisamos de pessoas como Luciano Hulk, precisamos de gente com desejo de mudança e vontade de verdade. A antena captou muitas imagens nesses últimos anos. Nosso coração foi e é capturado pelas mídias em muitos momentos de nossas vidas, mas ainda preferimos a rebeldia presencial por nossos direitos. Os sonhos estão latentes como há anos atrás.
Músicas: “Televisão” dos Titãs, disco: “Televisão” (1985)
“Comida” – dos Titãs, disco: “Jesus não Tem Dentes no País dos Banguelas” (1987)
Foto de destaque: Karla Boughoff

Nenhum comentário:

Postar um comentário