Os secundaristas
começaram a década com as caras pintadas pelo Fora Collor e terminaram na rua
contra FHC. Quem analisa é Carla Santos, presidenta de 1999 a 2001
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Para quem já pensa em É o Tchan e
Raça Negra quando o assunto é anos 90, Carla Santos avisa que as letras de O
Rappa e Os Racionais traduzem muito mais o período: “Muitos jovens não
trabalhavam nem estudavam, era muita violência. O acesso à universidade era um
sonho quase irreal de tão baixo astral que era aquele tempo”.
Na entrevista abaixo, a ex-presidenta
da UBES (gestão 1999-2001) relembra a luta da década em série especial sobre os
70 anos da entidade secundarista.
Para ela, os jovens começaram os anos
1990 com muita força graças ao fim da ditadura militar, em 1985, e à conquista
do voto aos 16 anos, em 1988, que aproximou a juventude da política. O
movimento dos “caras pintadas” contra o presidente Fernando Collor surpreendeu
a sociedade, que via o movimento estudantil como algo dos anos 1960.
Mas nem tudo saiu como o previsto
pelos secundas. Após Collor (1990-92) e um breve período de Itamar Franco
(1992-95), o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) implantou o
neoliberalismo, vendeu grandes empresas nacionais, acabou com o ensino técnico
e o direito à meia entrada. Por isso os jovens começaram e terminaram a década
com muita luta e resistência.
Adicionar legendaA gaúcha Carla Santos, de Novo Hamburgo, é a terceira entrevista da série “7 Décadas, 7 Entrevistas” |
1-
Já no começo dos anos 1990, os estudantes foram protagonistas no movimento
“Fora, Collor”, um dos mais importantes na história recente do Brasil. Por que
acha que os secundas se envolveram tanto com esse assunto?
Acho que três motivos foram muito
importantes para o grande engajamento dos secundaristas. O primeiro, sem
dúvida, tem a ver com a redemocratização, em 1988. Após duas décadas de
ditadura militar, de repressão, tortura, clandestinidade, repressão, finalmente
a população brasileira podia votar no seu presidente. E o primeiro presidente
eleito diretamente, Fernando Collor, representava uma expectativa de
democracia, de liberdades, transparência. No entanto, se mostrou na contramão
destes anseios. O grande movimento de “caras pintadas”, na minha opinião, é o
transbordamento de todo o silenciamento que a gente viveu durante a ditadura.
O segundo motivo são as medidas
tomadas por Collor. Foi um governo que buscou implementar o neoliberalismo no
Brasil, e entre as medidas esteve o confisco da poupança dos trabalhadores,
atingindo diretamente as classes médias da sociedade. Então os nossos pais
incentivaram a gente a participar das manifestações, eles nos levavam. Havia
esse sentimento de repúdio de todos.
O terceiro motivo fundamental foi o
voto aos 16, conquistado na Constituição de 1988. O direito de votar a partir
dos 16 anos passa a incluir essa parcela da sociedade no debate sobre as
eleições e a política.
Estes três fatores reposicionaram o
movimento estudantil como um movimento fundamental para a luta do povo
brasileiro nos anos 1990. Assim como nos anos 60 o ME teve um grande papel na
luta pela democracia, nos anos 90 volta à cena e toma a frente dos movimentos
sociais para dizer que não aceita corrupção, traição e que a democracia tem que
ser para valer.
“O grande movimento de ‘caras
pintadas’, na minha opinião, é o transbordamento de todo o silenciamento que a
gente viveu durante a ditadura”
Manifestação dos caras pintadas em São Paulo, 1992 |
2- Metade dos anos 1990 se passou sob o neoliberalismo de FHC (1995-1998/1999-2003). Por que os estudantes ficaram contra esta política?
Essa pergunta é muito interessante
porque, como diz a música do Cazuza, “eu vejo o futuro repetir o passado”.
Recentemente, o governo do ilegítimo Michel Temer quis privatizar a Eletrobrás,
uma proposta que já surgiu nos anos 1990 com Collor e com Fernando Henrique
Cardoso. As privatizações foram a primeira consequência do neoliberalismo de
FHC. Ele privatizou a Usiminas, a Companhia Siderúrgica Nacional, grandes
patrimônios nacionais, a Embraer, vendida a preço de banana, e a Vale do Rio
Doce, então maior exportadora de minério de ferro do mundo.
Esta política de privatizações levou
a um esvaziamento extremo do Estado. Ou seja, apesar de todo mundo pagar
impostos, a gente deixou de ter empresas fortes, que garantiam o
desenvolvimento econômico, para passar a ter ameaçado o direito aos serviços
públicos. No alvo disso, esteve a educação.
3-
Mas como esta política impactou a educação e o movimento estudantil?
O resultado desta política de
privatizações foi o fim do ensino técnico no Brasil nos anos 1990. Como
esquecer a campanha da gestão presidida pelo meu amigo Kerison Lopes (1995-97),
“queremos mais que apertar parafusos”, de 1995? Já era uma resistência ao fim
do ensino profissionalizante com ensino médio. [o Decreto 2.208 de 1997, do
Ministério da Educação, separou o ensino médio da formação técnica].
Eu fui estudante da última turma da
Escola Estadual 25 de julho, em Novo Hamburgo (RS), do curso técnico de
tradutor. Nunca mais houve este curso lá. Isso significou um tremendo
retrocesso na qualificação da mão de obra no Brasil e na vida dos jovens que precisavam
da formação profissional e abriam mão do ensino médio.
“A Era FHC foi marcada pelas
privatizações, pelo fim do ensino técnico, pelo fim do direito à meia entrada e
pela explosão de casos de corrupção com zero investigação.”
Campanha da UBES pela formação técnica integrada ao ensino médio, de 1995 |
Outra consequência grave do governo FHC foi o fim do direito à meia entrada. O ex-ministro da educação Paulo Renato de Souza decretou o fim a este direito ao propor um decreto que validava qualquer carteira estudantil para o acesso. Além de impactar violentamente as receitas da UBES, isso gerou uma discussão sobre quem tinha este direito, já que qualquer um, mesmo sem ser estudante, conseguia ter.
Por fim, mais uma questão importante
é que a explosão de casos de corrupção nesta época também afetou as verbas para
educação. A gente tem hoje o Lula preso sem prova alguma, tivemos a presidenta
Dilma impichada por “pedaladas fiscais”, e a era FHC deixou para a história a
marca do auge da corrupção no Brasil.
O Fernando Henrique simplesmente
conseguiu desmontar a CPI da corrupção sobre o seu governo. Eram tantos
escândalos que foi criada uma CPI para dar conta de quase 30 casos com
denúncias seríssimas, como Caso Sivam, a “pasta rosa”, compra de votos para
reeleição, corrupção na venda da Vale, caixa dois de campanha, juiz Lalau,
farra do Proer… Enfim, era uma grande lista e nenhum dos casos foi apurado até
hoje.
4-
Como os estudantes se mobilizavam contra o governo de Fernando Henrique
Cardoso?
No primeiro mandato de FHC, era muito
difícil resistir. O valor do real estava equiparado ao dólar, era um governo
pós-impeachment do Collor, e que ideologicamente construiu a ideia de que os
serviços eram responsabilidade da população e não do Estado.
Já no segundo mandato, a máscara
caiu. A gente costumava dizer que o FHC era capacho do Fundo Monetário
Internacional (FMI), porque além do dinheiro público desviado em corrupção, uma
grande parte ia para pagar dívidas do FMI, um órgão do governo dos Estados
Unidos.
Começou a ter uma grande onda de
manifestações, a partir de 1997, 98. Eu lembro que nas jornadas estudantis de
28 de março, em homenagem ao estudante Edson Luis, morto pela ditadura, a menor
tinha 10 mil. Jornada pequena era com 10 mil estudantes. A gente colocava 20,
30, 40 mil estudantes nas ruas com facilidade.
Nunca teve nenhuma forma de diálogo
com o governo FHC, nenhuma disposição. Não existia conselhos, conferências,
fóruns. Nunca que o presidente da República recebia representantes estudantis.
Presidenta da UBES, Carla protesta por CPI em 2001 |
5- Então o movimento de “Fora FHC” ganhou força no fim da década? Quais as conquistas disso?
Isso, este é um pouco do histórico da
onda do movimento social. A gente começa a Era FHC na baixa e termina na alta.
Espero que a gente consiga se inspirar nesta onda para virar o jogo nas
eleições agora de outubro.
Neste caldo, surgiu a articulação do
Fórum Nacional de Lutas, onde o MST tinha papel decisivo, na figura do Stedile,
e que também marcou muito o período de resistência ao neoliberalismo no Brasil.
Acho que um grande fato de
resistência à Era FHC foi a Marcha dos Cem Mil realizado em 26 de agosto de 99
em Brasília, que pedia Fora FHC e o fim do neoliberalismo no Brasil. Este
movimento culminou em 2001 na criação do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre,
reunindo movimento internacional de resistência, e na vitória do Lula em 2002.
6- A
democracia era ainda mais recente e havia poucos exemplos de governos
populares… Quais eram os maiores sonhos dos jovens para a educação naquele
tempo?
Por incrível que pareça, os sonhos
são muito parecidos com os que vejo muitas pessoas hoje desejando. Primeiro,
trabalho. Assim como vivemos onda de desemprego e falta de oportunidade hoje, a
gente vivia nos anos 1990. Ter um trabalho era uma das coisas mais importantes
para a juventude, porque o desemprego era imenso, a fome e a miséria era
grande, e a violência era grave. Se você pegar a discografia do Rappa, você vai
ter uma ideia de como eram os anos 1990: “A minha arma tá armada e apontada
para a cara do sossego, porque paz sem voz não é paz é medo”.
Até a UBES fez uma grande campanha na
época pela paz. Sou da Paz, uma marca da gestão que a Juana Nunes (97-99)
presidiu na UBES. A falta de um lugar de paz é como a gente está vendo hoje,
ainda mais com intervenção militar, assassinato da Marielle….
“Se você pegar a discografia do Rappa,
você vai ter uma ideia de como eram os anos 1990: ‘A minha arma tá armada e
apontada para a cara do sossego, porque paz sem voz não é paz, é medo’.”
O jogador Ronaldo, craque da copa de 1998, e o cantor Milton Nascimento posam para campanha da UBES, UNE e outras entidades estudantis, em 1997 |
Foi uma época muito difícil. A gente tinha um grande número de jovens que não estudavam nem trabalhavam, os chamados “nem-nem”. E quem conseguia entrar na escola tinha muita dificuldade de terminar o ensino médio. E estar na universidade, para muitos, muitos mesmo, nem passava pela cabeça. Quando a gente defendia o acesso à universidade pública pelos estudantes de escola pública, a gente estava ali plantando a semente de um sonho. Um sonho que não era nem cogitado. Nem frequentava a cabeça da galera, de tão baixo astral que era aquele período.
“Quando a gente defendia o acesso à
universidade pública pelos estudantes de escola pública, a gente estava
plantando a semente de um sonho que nem frequentava a cabeça da galera, de tão
baixo astral que era aquele período.”
Campanha de UBES nos anos 90 |
Coneg da UBES de 2001 exibe faixa por reserva de vagas na universidade pública |
7- Como explicar para um adolescente que já nasceu nos anos 2000 o que foi ser jovem nos anos 1990?
Pensa num lugar onde não existe
smartphone, laptops, nem internet. Isso foram os anos 1990. Parece filme de
ficção falar isso hoje. Eu militava com um BIP, não sei se alguém da UBES já
ouviu falar disso. Você dependia muito mais da presença, o mundo virtual não
existia. Era viver em outra velocidade. As distâncias eram outras.
Carla dá entrevista à Capricho
em 1999
Fonte: UBES
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