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segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

A força negra da compositora paraibana Cátia de França

Aos 71 anos, Cátia de França fala sobre política, arte e negritude e avalia um pouco de sua trajetória artística. - Créditos: Nathalia Cariatti
Aos 71 anos, Cátia de França fala sobre política, arte e negritude e avalia um pouco de sua trajetória artística. / Nathalia Cariatti

Conheça a arte da filha de Adélia de França, que compõe sem impor fronteiras entre literatura e música.

Cátia de França tem 71 anos e saiu da Paraíba em busca de mostrar sua arte pelo Brasil afora quando tinha apenas 19 anos. Tem em sua bagagem um encontro de letras, sons e sonhos. Suas canções já foram gravadas por grandes nomes da MPB, como Elba Ramalho, Amelinha e Xangai. Tem 6 discos gravados: 20 Palavras ao Redor do Sol (1979), Estilhaços (1980), Feliz  Demais (1985), Avatar (1996), No Bagaço da Cana: Um Brasil Adormecido (2012) e Hóspede da Natureza (2016). Essa mulher forte representa bem o momento político que estamos vivendo, na necessidade de resistir a preconceitos e ao ódio, “mas com o poder do humor” e da arte.
Confira a seguir a conversa entre o BdF e a lenda viva da música brasileira.
BdF: Fala um pouco da sua origem e da influência da sua mãe, a primeira professora negra da Paraíba, Adélia de França, na constituição do que é Cátia de França hoje?
Cátia de França: Você focar Cátia de França, você tem que saber as origens, o tronco, as raízes, quem foi essa pessoa que me gerou, então tem a presença dela. Minha mãe era uma figura irrequieta para a época, as pessoas que me dizem, andava bem vestida, morava na Rua da República, depois Rua da Pedra, ensinou em Itabaiana, Rio do Peixe, Pedras de Fogo, Guarabira. No entanto, as pessoas acessavam a internet e não tinha nada sobre minha mãe, aí uma universitária daqui de João Pessoa, Simone Cavalcanti, pesquisou sobre ela e passaram a saber quem era ela. Eu estou trabalhando para que essa dissertação seja publicada com a história dela! Tem uma escola aqui em João Pessoa, em Valentina, com o nome dela, mas não tem a foto dela. Era para ter um pôster dela para as crianças saberem quem era ela. Porque meu trabalho é todo em cima de livros? Porque mamãe me deu livros, eu me lembro faltava manteiga, mas não faltava livros, então essa era a figura revolucionária. Na certidão de nascimento dela não dizia que ela era negra, dizia que ela era parda, ela ficava o cão porque botaram parda, ela dizia isso não é coisa nenhuma, eu sou negra, porque não colocaram no meu registro? E o grande senão dela era o não reconhecimento do meu avô, que era um comerciante altamente conhecido no interior, e não assumiu ela, então na certidão dela ficou só o nome da minha avó, que era lavadeira, Severina de França. Mas ela tirou isso de letra, começou a ensinar, era requisitada. A escola dela era na Almeida Barreto, rua do mercado central, de um lado era a casa de hospedagem para rapazes, filhos de fazendeiros do interior da Paraíba, e do outro, eram de moças, e eu convivia com aquele povo todo, entendeu? E ela logo de pequena, ela me deu um piano, com 4 anos de idade, me deu um pianinho de brinquedo, mas saía o som né? Para eu amar aquela coisa, para não ser você tem que ser isso. Com 12 anos, eu recebi um piano caríssimo para a época, imagine com o salário de professora primária, ela me deu um piano alemão, imagino o quanto ela não penou para pagar aquilo! E eu tenho ele até hoje. Eu quero ver se eu faço aqui uma fundação para eu colocar tudo meu, meus papéis, retratos, discos, telas, tudo isso eu quero ver se fica tudo em um canto só, com toda a segurança possível. Tem muito material meu na estação ciência, que eu tenho que retirar de lá e colocar em um canto que ninguém mexa mais. Eu tenho que conseguir isso junto de algum órgão para me dar essa salvaguarda.
Sobre a política cultural, como você acha que os governos se comportam frente à arte e à música?
Parece que cultura é uma coisa descartável, mas cultura é a digital de um povo. Você sente como é que se trata as artes populares através disso, e agora está todo mundo meio de cabelo em pé, como é que vai ser depois de janeiro de 2019, como é que vai ser encarado isso? Porque já estavam tentando quebrar o Ministério do Trabalho, você já sente como é que vai ser e o que é que vai vir aí pra a gente, então está todo mundo colocando as fichas todas em 2018, entendeu? Nesse tempo assim a gente vê quem é quem, a gente anda nas ruas e a gente já vê a digital do que vai vim. Onde eu moro, em São Pedro da Serra (RJ) você já vê a ódio. É uma violência contida, uma coisa contra o negro, contra o índio, contra a população LGBT, as máscaras estão caindo, estou chocada!
Em 2017, durante entrevista à Revista Trip, você se definiu como uma mulher que tem sangue nas ventas, negra, índia, cigana, bruxa, candomblecista, aquariana, como você enfrenta os preconceitos? Na música também tem preconceito?
Eu ainda me defino assim e ainda mais, sou de esquerda. Na música também tem preconceito, daqui da Paraíba eu fui a primeira mulher a toca guitarra, eu já comecei daí, é uma coisa surda. Os garçons, as atores e atrizes das novelas que são babás, empregadas domésticas, motoristas são, eram sempre de negros, não havia um advogado negro, e no cinema, o racismo é muito mais visível, porque tem grandes roteiristas negras e não são chamadas, diretoras negras e não são chamadas, então é um movimento de amordaçar esse povo. Mas quando isso vem à tona e é publicado, não tem como esconder mais, não tem como segurar esse grito, uma coisa do povo negro com a ajuda dos orixás e dessa gana de sobreviver isso vem à tona. Então está latente!
Como você define sua arte, você é escritora, multi-instrumentista, compositora?
Eu escrevi um cordel sobre Zumbi em 5 volumes, mas não sigo a métrica do cordel, o meu jeito de escrever cordel eu classifico como “catarinesca”, que é do meu nome Catarina, entendeu? Eu inventei uma modalidade! Está em vias de sair, acho que em 2019 sai, o infantil, o Natureza Naturalmente, e o Zumbi e tem o manual da sobrevivência, que é sobre as pessoas que se separam, como sobreviver a um descasamento?
Com 71 anos, como você avalia a sua trajetória?
Foi preciso muita coragem e minha mãe já preparou para isso porque eu me lembro que com 15 anos ela me mandou para um colégio interno em Pernambuco, aí a família toda ficou em polvorosa, mamãe dizia: eu preparei ela para a vida, ela vai e não vai acontecer nada, eu não posso ir e não tenho tempo porque tudo depende de mim e do meu trabalho, da sobrevivência da gente e meu marido é um homem doente, não vai levar ela. Então eu fui e já comecei com 15 anos pegando 2 ônibus e indo estudar em Pernambuco, saí com 19 anos, formada professora e daí ela começou a dizer que eu saí para ser uma coisa e voltou outra, porque eu me converti a religião evangélica e mamãe não era de religião nenhuma. Mamãe dizia: isso vai criar um obstáculo para o tipo de arte que a minha filha vai exercer, porque tudo não é de Deus, é do demônio e eu não quero isso. Aí mamãe me colocou para andar com o jornalista Diógenes Brayner sair comigo e começar a compor, daí eu comecei, tirei carteira de músico por imposição dela, para eu ficar profissional, e daí eu não parei mais. Quando fui para o Rio, aí já tinham pessoas me esperando que arrumaram emprego para mim, mas não na área de música. Aí Elba chega, precisa de músicos aí chama eu, Pedro Osmar, Damilton Viana, Vital Farias, e a gente foi requisitado para fazer teatro, a parte de música junto para ir para São Paulo e daí não parei mais. Então eu peguei os anos de chumbo de São Paulo, em 1975.
Sobre esses tempos que não podiam falar de política, do que você se lembra?
Eu me lembro que a música chegava a partir de corais, os estudantes liam partituras nas escolas e isso na época foi tudo retirado durante a ditadura. E a tendência é isso mesmo eles não querem que as pessoas se expressem, uma certa liberdade que pode dar vazão aquele grito que precisa sair, isso é retirado. Então na época em 1975, onde tinha nordestino, a polícia caía logo em cima. Ficam por ali os olheiros, quando sabia, a gente ficava num canto que tinha papéis dizendo que a gente estava trabalhando no teatro em frente, mas mesmo assim fomos colocados em um camburão, juntou bastante gente e para não observarem isso, fomos soltos na rua de trás. Foi um negócio muito estranho.
E qual o papel da arte para sobrevivermos a tempos de ódio e intolerância?
Sempre, não precisa nem cantar, entendeu? Um traço que você dê num muro, o grafismo, qualquer manifestação artística você pode desmembrar e desmascarar e criar um coágulo nesse organismo que se instalou por causa de inércia da gente. Isso veio não foi de uma hora para a outra, sabe aquela coisa de ir deixando, permitindo, entendeu? A mesma coisa da igreja católica, a igreja católica se achando com aquela coisa, de repente outras religiões tomaram a frente e agora é o agronegócio e as igrejas que não sejam de matrizes católicas, tomaram o poder. No Rio de Janeiro a gente sente isso e a tendência é essa. Se você for ler a bíblia, com um olhar de abertura, em momento algum, esse ensinamento diz que é para pegar as armas. Não!  Bíblia é amor, condescendência, então quando Jesus fez o Ministério dele, ele não foi pegar cabeças coroadas na Sinagoga, ele não pegou doutores, ele pegou pescadores, lavradores, foi numa casta mais humilde que ele pousou a igreja dele, então existe toda uma mentira, o gesto de arma na mão, isso não vem da Bíblia, na Bíblia não tem isso. Se quiser ler da maneira correta, ali na bíblia não se ensina isso, então usam para querem mascara, confundir e é tudo em cima de coisas mentirosas, é o tal do fake news. Vi tios mandar fotos de fuzil para o sobrinho dizendo: olha aqui para você! Então gente tem que mais do que nunca que dar as mãos e se preparar porque temos mais 4 anos pela frente.
Muitos jovens redescobriram Cátia de França, como foi isso?
Foi a internet. A internet é uma faca de dois gumes, tanto pode usar para porcaria, como pode usar para ter acesso. No momento que acabaram as lojas, não se vendem mais discos, os meninos baixam tudo na internet. Onde eu chego predomina só jovens cantando junto, no Circo Voador, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, recentemente, foi assim. Então a internet me colocou de novo no topo, enquanto que a mídia burra quer me amordaçar porque não interessa uma meia dúzia que tem na mão o monopólio da mídia, a eles não interessa uma negra, com ideias de esquerda, lésbica e de macumba, não querem, é muita minoria em cima, então a internet que me colocou no meu devido lugar, onde merecidamente eu teria que estar.
Como Cátia de França quer ser conhecida, como você quer que as pessoas te conheçam, como você quer ser lembrada?
É o poder do humor, faz rir, mas também faz pensar. O poder da dança, meu trabalho é todo suinguado mas ali pelo meio, se você ver o texto que eu estou dizendo, daquela capoeira, “sustenta a pisada”, eu aliada à literatura cortante como de João Cabral de Melo Neto, de José Lins do Rego, que é aqui da Paraíba, Guimarães Rosa, a coisa da criança que existe dentro da gente, que é o Manoel de Barros. Você pode dizer grandes coisas, mas não pode deixar essa criança, a gente não pode deixar de rir e de dançar, porque enquanto há vida, há reação e há esperança. E não esquecer nunca que a minha mãe lá trás, Adélia de França, ela é uma pessoa do humor, uma vez ela estava dando aula e o côco caiu na cabeça dela, ela riu, e disse: - Levei agora mesmo um cascudo de Deus! Então minha mãe e minha parte negra da família tinham muito humor, minha tia Celina era muito engraçada. Então eu quero ser lembrada, a filha da Adélia, que tinha como livro de cabeceira Geografia da Fome, de Josué de Castro e tinha na parece de casa, de um lado Dom Hélder Câmara e do outro, Che Guevara, minha mãe era assim, e eu quero sempre que lembrei disso.
Edição: Cida Alves
Fonte: brasildefato.com.br

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