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segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Uma artista em defesa da vida

Neste 10 de dezembro, a Declaração Universal dos Direitos Humanoscompleta 70 anos de promulgação, pela ONU, em 1948. O mundo ainda estava abalado com os efeitos terríveis de duas grandes guerras. Muitos artistas – ao redor do mundo – expressaram em suas obras os efeitos destes abalos e como eles atingiram o mais básico direito de todos, o direito à vida.
Por Mazé Leite*
Litogravura de Käthe Kollwitz (reprodução)
Escolhi falar de uma mulher, Käthe Kollwitz, desenhista, escultora e gravadora alemã, cujo conjunto da obra é um grito em defesa do direito humano mais fundamental: a vida.
Käthe nasceu na pequena cidade de Königsberg, em 8 de julho de 1867. Antes dos 20 anos de idade, apoiada por seu pai, viajou à Berlim e Munique para estudar desenho. Tornou-se amiga dos escritores Gerhart Hauptmann e Arno Holz, com os quais ia ao museu de Munique admirar juntos as pinturas de Rubens. Logo em seguida, foi estudar em Berlim com um pintor especialista em retratos, Karl Stauffer-Bern, que lhe orientou a estudar gravura com Max Klinger.
Retornando à Köninberg, ela continua trabalhando em seu projeto iniciado em Munique, inspirado no romance “Germinal” de Émile Zola, o qual retrata a vida dos mineiros franceses. Ela vai fazer suas pesquisas de figuras humanas nos bares à beira-mar. Nesse período, aprende com o gravador Rudolf Mauer a técnica da litogravura (gravura em pedra).
Casou-se com Karl Kollwitz, que havia se formado em medicina, e foram morar em Berlim, no bairro Prenzlauer, onde ele abriu seu consultório. Estudando os escritos teóricos de seu professor de gravura Max Klinger, Käthe se convence de que era necessário recorrer ao desenho para ser capaz de fornecer uma representação gráfica dos difíceis tempos em que ela vivia.
Em 1892 nasce seu primeiro filho, Hans. No ano seguinte, após assistir a uma peça de teatro que descrevia a revolta dos tecelões da Silésia contra a fome em 1844, Käthe Kollwitz iniciou seu primeiro ciclo de gravuras “A Revolta dos Tecelões”, trabalho que ela completou em 1897.
Em 1896 nasce seu segundo filho, Peter.
Ela expõe pela primeira vez em 1898, na Grande Exposição de Arte de Berlim, onde apresenta as gravuras com o tema da revolta dos tecelões. Foi muito elogiada e reconhecida como artista. O júri dessa exposição queria lhe conferir uma medalha, mas o imperador da época, Guilherme II, se opôs à ideia, pois o tema não lhe agradava, assim como não era usual prestar homenagens a uma mulher…
Entre 1898-1903, Käthe deu aulas de desenho e litografia na Escola de Artistas de Berlim. Em 1899 participa da primeira exposição do grupo que ficou conhecido como “Secessão de Berlim”, do qual foi membro de 1901 a 1913. Na exposição sobre arte alemã na cidade de Dresden, finalmente ela pode receber uma Medalha de Ouro por seu conjunto de gravuras sobre os tecelões.
Mais uma vez se inspirando em um livro (de Wilhelm Zimmermann, “História Geral da Grande Guerra dos Camponeses”), ela começa a preparar suas gravuras com o tema “Guerra Camponesa”.
Durante uma viagem de dois meses a Paris, Käthe fez aulas na Academia Juliana para se familiarizar com os conhecimentos básicos de escultura, forma de arte pela qual seu interesse era crescente. Participou, então, de oficinas de escultura no ateliê de Auguste Rodin.
Em 1906, Käthe desenhou o cartaz para a exposição “Trabalho doméstico na Alemanha” em Berlim, e mais uma vez desagradou aos poderosos de seu país: a Imperatriz se recusou a ir visitar a exposição enquanto o cartaz de Käthe não fosse recolhido da rua.
Em 1907, participando de uma exposição dirigida por Max Klinger na Itália, ela pode conhecer Florença, onde ficou por vários meses, e Roma, onde passou três semanas.
Entre 1908 e 1910, a artista colaborou com o jornal satírico “Simplicissimus” com 14 desenhos onde ela expunha os problemas atuais do proletariado. Sua arte gradualmente passa a mostrar como ela se comprometia, social e politicamente, com os rumos de seu país.
A partir de 1909 ela passa também a se dedicar ao trabalho com escultura. Em 1912, é escolhida como a chefe do grupo de artistas “Secessão de Berlim”.
Seu cartaz, desenhado para o Sindicato das Comunas da Grande Berlim, que denunciava a grande escassez de moradias na cidade, foi censurado e proibido de ser exibido.
Em 1913, por disputas internas, a “Secessão de Berlim” se divide, e Käthe adere ao grupo “Secessão Livre”, que presidirá de 1914 a 1916. Ela será co-fundadora e primeira presidente da Associação de Arte da Mulher, até 1923.
O ano de 1914 foi terrível para ela. Seu segundo filho, Peter, que havia se voluntariado na frente de guerra na Bélgica, morre em combate. Tinha 18 anos.
Imediatamente sua mãe resolve entrar no movimento pacifista, contra a Guerra. Ela começa a pensar em como transformar essa dor da perda do filho em um monumento, que somente ficará pronto em 1932 e se denomina “Mãe em luto”.
Em uma carta datada de 30 de outubro de 1918, publicada em um jornal de Berlim, ela se opõe ao movimento “Apelo em favor da guerra”, que estava sendo organizado na cidade. Ela termina a carta citando uma frase do livro de Goethe “Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister”: “as sementes não podem ser moídas”. E passa a trabalhar em uma série de xilogravuras intitulada “Guerra”.
Em 1919, Käthe Kollwitz torna-se a primeira mulher a ser aceita como membro da Academia de Belas Artes da Prússia, para onde foi nomeada professora, função que não chegou a exercer porque mulheres não podiam ocupar cargos públicos…
Sua dor pessoal – a morte do filho -, refletia-se cada vez mais em seu trabalho, tornando-o ainda mais dramático, onde ela expunha suas próprias feridas e as de todos os que sofrem com a guerra.
Neste sentido, faço um destaque sobre o conjunto da obra de Käthe Kollwitz: ela dá um grande papel – tanto em suas gravuras, quanto em seus desenhos e esculturas – à imagem da mulher, especialmente a da mãe. A mãe como detentora potencial da vida, aquela que supre e nutre, a que cura e protege. Em várias de suas gravuras há uma mãe, ou grupos de mães unidas protegendo os corpos de seus filhos com seus próprios corpos. Com toda sua energia. Parece querer mostrar, através da imagem simbólica da mãe, que a sociedade deveria ser a mãe que dá a vida, e não a morte; que agrega, e não divide; que envolve, ao invés de desprezar; que protege, ao invés de abandonar.
Também como uma mulher que vive em uma época tão dura, Käthe Kollwitz fez vários autorretratos, como se tentasse acompanhar nos traços do seu rosto que ia envelhecendo, toda a sua própria experiência, seu sofrimento, seu choque diante de um mundo onde os direitos eram tão vilipendiados que deixavam marcas em sua própria face.
Em 2010, visitei o Museu Käthe Kollwitz, em Berlim, na mesma casa onde ela viveu com sua família. Sua obra já me impressionava desde meus 20 anos. Pude ver de perto como ela escancara as zonas sombrias da vida, com uma força intensa nos traços, uma força pulsante e latente de uma artista e mulher que não se rende, não se acomoda. Artista inquieta, forte, determinada, consciente de seu papel no mundo. Tudo isso representado em sua arte.
Mas um trabalho seu me impressionou ainda mais: o monumento que foi inaugurado em 1932, intitulado “Mãe em luto”, localizado num prédio quadrado, com fachada em estilo clássico, localizado na avenida principal da cidade, a Unter den Linden. Um imenso monumento fechado, como uma caixa, escuro. No centro, a escultura mostrando uma mãe com o corpo do filho morto. No alto, acima dela, a única entrada de luz é através de uma claraboia que se derrama furtivamente sobre a escultura. Em volta do imenso salão, ladeando as paredes, um balcão de concreto onde os visitantes podem se sentar e observar. Eu fiquei sozinha por um bom tempo, contemplando esse conjunto inquietante, o lugar em penumbra, a escultura solitária de uma verdadeira “mater dolorosa”, uma espécie de releitura da “Pietá” de Michelangelo. A Mãe é maior que o Filho, um homem adulto: que precisava ser maior, para poder representar a vida que ela gostaria de dar de volta a seu filho, localizado entre suas pernas abertas, como se ela o empurrasse de volta para seu ventre, para fazê-lo renascer. Mas ele está morto, e a mãe também o vela, o abraça, o aconchega. Parece cantar para ele alguma canção longínqua de ninar… Esta escultura é a dor de todas as mães do mundo, as mães que perderam seus filhos. É o retrato também da mãe negra, brasileira, carregando seu filho morto pela violência policial, cena que se repete a cada 23 minutos em nosso país!
Käthe Kollwitz produziu muito em toda sua vida, sempre com foco nos oprimidos, nos famintos, nos injustiçados. Lutou pela paz, desenhando cartazes e fazendo ilustrações. Sofreu censura do governo nazista também, como havia sofrido dos imperadores. Se impôs como artista e foi ativa na luta por mais direitos para as mulheres.
Chegada a II Guerra, Käthe se refugiou, já viúva, no povoado de Moritzburg, próximo a Dresden. Morre a mulher, no dia 22 de abril de 1945, com 77 anos de idade, mas a obra dessa artista gigante permanecerá viva por muito tempo, pois sua obra defende aquele direito fundamental do ser humano, a Vida.
*Mazé Leite é artista plástica, bacharel em Letras-USP, membro do Ateliê Contraponto de Arte Figurativa.

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