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domingo, 3 de março de 2019

Adoniran Barbosa e o não-lugar de fala

Adoniran evoca a troca de papéis. O signo do deslocamento está em tudo, em sua vida, na falsificação da certidão de nascimento para trabalhar mais cedo; na diversidade de ocupações que exerceu: serralheiro, garçom, pintor, ator, vendedor na 25 de março… Atravessa o samba, ajudando a explicar os erros propositais de português.
Por João Paulo Rodrigues, no Outras Palavras
“Vamos armoçar
Sentados na calçada
Conversar sobre isso e aquilo
Coisas que nois não entende nada”
[Adoniran – Torresmo à milanesa]
Ano passado assisti o documentário Adoniran – Meu nome é João Rubinato e muita coisa ficou na memória. Adoniran passou sérias privações ao longo da vida e chegou ao fim com uma ponta de mágoa em relação ao mundo, que não lhe deu o mínimo, apesar das obras-primas que deixou. Desavisados ficam surpresos com a pontinha de mágoa num sujeito que, afinal, virou a imagem da irreverência. Mas um outro aspecto da personalidade do sambista, diretamente relacionado ao anterior, salta ao primeiro plano: João Rubinato era um criador de personagens, no sentido total da coisa. A procissão de figuras populares que circulam nos sambas é apenas o coroamento de uma vida integralmente dedicada ao trabalho da imaginação. O poder da imaginação era tamanho que parece ter inventado uma personalidade para uso próprio, forjada sob medida para lidar com as porradas da vida, e este é o ponto que gostaria de abordar, porque não se trata de “imaginação” em qualquer sentido genérico, mas algo imposto pela necessidade de sobrevivência, revertida em vantagem para a criação.
Foi este raciocínio que me ocorreu, assistindo o documentário sobre a vida de João Rubinato. Então sem querer, tropecei numa pergunta estranha: “qual seria o lugar de fala de João Rubinato?”. Percebi que, num tempo onde a procura por identidades fixas se antecipa ao exercício da crítica, a força de uma figura como Adoniran reside justamente numa espécie de não-lugar que ocupa. Vou tentar esclarecer: ainda que a trajetória de vida ajude a compreender a obra musical, fica muito longe de encerrar a discussão, justamente porque João Rubinato excedeu a si próprio, por assim dizer, resultando inútil a simples repetição monótona de sua origem pobre, a versão melodramática que repisa os sofrimentos que passou. É para os sambas que devemos olhar. A voz que se comunica com nós através do samba não coincide exatamente com o indivíduo Adoniran, menos ainda com João Rubinato, daí porque quando olhamos sua vida a capacidade de invenção salta ao primeiro plano, como eu disse, e a dureza da vida cede passagem sem ressentimento. Pensei comigo que a força da arte mora aqui: sem negar a emergência da vida, pode abordá-la por vários lados diferentes, multiplicando pontos de vista sobre a realidade, fazendo pensar com uma margem de manobra que não se tem na vida real, e que só a experimentação estética pode proporcionar. Adoniran era partidário da liberdade total em arte, coisa que nunca precisou falar, porque é a marca dos sambas que fez. Então desdobrei a pergunta e aqui estamos: se aquele “eu” que fala nas músicas não corresponde à pessoa de Adoniran, de quem se trata? Quem sabe alguma dose de incerteza sobre a identidade da voz que fala através do samba possa ajudar a compreender a força atual que irradia da figura de Adoniran, num tempo como o nosso, obcecado pela fixação de identidades.

Num relógio é quatro e vinte, no outro é quatro e meia

Estamos habituados à imagem de Adoniran como o cronista da modernização de São Paulo. Tem muita verdade aí, mas também o risco de reduzir o samba à mera função de registro. Um convívio rápido com Adoniran mostra que a cidade não é só o assunto constante das composições, mas sobretudo algo experimentado por uma diversidade de personagens, não raro dentro de um mesmo samba. Venha ver / Venha ver Eugênia / Como ficou bonito / O viaduto Santa Ifigênia, estes versos exaltam a reforma do viaduto, mas são cantados em tom melancólico, como se o conteúdo traísse o sentimento. O personagem quer acreditar, mas sabe, no fundo, que a força que reforma é a mesma que demole. Exemplos do tipo pipocam em Adoniran por todos os lados, mas o objetivo aqui é destacar rapidamente a mobilidade de pontos de vista, que vai dos detalhes e chega nos extremos, como em Mulher, patrão e cachaça, onde de instrumentos musicais travam difícil triângulo amoroso:
Num barracão da favela do Vergueiro,
Onde se guarda instrumento,
Ali, nois morava em três.
Eu, Violão da Silveira, seu criado,
Ela, Cuíca de Souza,
E o Cavaquinho de Oliveira Penteado.

Cuíca de Souza chorava em dia de batucada, “como quem tem algum dodói”, atraída por Violão da Silveira, que “caprichava o sol maior”. Então a virada:
Mas um dia, patrão, que horror!
Foi o rádio que anunciou, com o fundo musical,
Dona Cuíca de Souza
Com Cavaco de Oliveira Penteado se casou.

Dupla traição: o casamento da Cuíca e do Cavaco, que, além disso, agora tocam no rádio e não mais na roda. Mulher, patrão e cachaça é um samba que nasceu da imaginação do sambista em brasa com o diálogo dos instrumentos, o “pergunta-responde” da batucada, transposto sem mais para uma situação da vida. Parece próprio de Adoniran a disposição de recolher sugestões da vida miúda e levá-las às últimas consequências, em forma de samba, multiplicando pontos de vista, o que não parece tão comum em outros nomes consagrados – penso, por exemplo, em Cartola, Nelson Cavaquinho, Geraldo Filme, entre outros, que tem a veia lírica colada num “eu” mais estável e constante, com menor rotatividade de vozes e multiplicidade de situações. Adoniran é e não é o Violão, o Cavaco e até mesmo a Cuíca de Souza; é o sambista pobre do barracão e o que vai tocar no rádio e ganhar dinheiro. É Eugênia também. O ex-amigo Pafunça. Nicola, Iracema, Matogrosso e o Joca. Todos são Adoniran, que, por sua vez, não é ninguém, mas uma criação de João Rubinato. Boa parte do riso que Adoniran provoca vem desses deslocamentos imprevisíveis e, por vezes, quase imperceptíveis.
É farto o repertório das “mentiras” narradas por Adoniran em suas músicas. É crível que o próprio Adoniran, a certa altura, já não enxergasse a fronteira entre o vivido e o inventado. Não sabia onde ficava o Jaçanã do Trem das Onze, menos ainda a Vila Esperança, bairro da zona leste daquele “primeiro carnaval”. No entanto, qualquer um de nós, mesmo que tivéssemos vivido na pele um primeiro carnaval em Vila Esperança ou fôssemos o filho único que precisa tomar o último trem das onze, ainda assim, não teríamos transformado tudo isso em sambas tão imortais. A posse privada da experiência imediata não é atestado de garantia. Penso que seria do gosto de Adoniran explicar este enigma aparente formulando outro, também retirado do seu repertório: Num relógio é quatro e vinte / No outro é quatro e meia / É que de um relógio pra outro / As horas vareia.

A matemática da vida

Muito antes dos atuais serviços de aplicativo de entrega de comida, de bicicleta ou moto, o adolescente João Rubinato exerceu a função em Jundiaí, entregando marmita a pé. A respeito desse bico na juventude, declarou: “a matemática da vida lhe dá o que a escola deixou de ensinar: uma lógica irrefutável. Se havia fome e, na marmita oito bolinhos, dois lhe saciariam a fome e seis a dos clientes; se quatro, um a três; se dois, um a um”. Essa “lógica irrefutável” a que se refere é o improviso, que comentei no início do texto: imaginação a serviço da sobrevivência, que o futuro Adoniran Barbosa reverteria em vantagem na composição de samba. A lógica do improviso é central, está presente na maioria dos sambas, e, para não roubar muito da marmita alheia vou citar rapidamente o exemplo do belíssimo Abrigo de Vagabundos. O samba narra a trajetória do sujeito que “trabalhou o ano inteiro / numa cerâmica fabricando potes / lá no alto da Mooca”, então juntou dinheiro, comprou um “lindo lote”, para construir sua casa. Como falta a planta, improvisou: pediu um favor a João Saracura, “fiscal da Prefeitura, um grande amigo, arranjou tudo pra mim”. Os versos finais devem constar entre os mais belos da história do samba:
Minha maloca, a mais linda que eu já vi
Hoje está legalizada, ninguém pode demolir.
Minha maloca a mais linda deste mundo
Ofereço aos vagabundos
Que não têm onde dormir
Inúmeros outros trazem a marca do improviso, nos temas, nas situações narradas e como princípio básico de composição: à medida em que muda o enfoque, passando por vagabundos, maridos abandonados (Apaga o fogo, mané), cantores esquecidos (Já fui uma brasa), velho sábio (Envelhecer é uma arte), peão de obra na hora do almoço (Torresmo à milanesa) etc., faz tudo girar sob o signo do provisório. Nada é pra sempre, João. Adoniran compõe para produzir sobressalto, despertar a inteligência, o riso e a disposição crítica por meio de lances inesperado de inventividade. Para continuar no tema da marmita, em Torresmo à milanesa bate a hora do almoço e, repentinamente o sujeito começa a perguntar aos colegas o que trouxeram:
Que é que você trouxe na marmita, Dito?
Truxe ovo frito, truxe ovo frito
E você, beleza, o que é você troxe?
Arroz com feijão, e um torresmo à milanesa
Da minha Teresa!

O interesse na marmita alheia é comum no mundo do trabalho, e é inclusive motivo frequente de brincadeira mundo afora, de modo que Adoniran está glosando aqui um assunto importante na vida dos trabalhadores. Fora isso, que não é pouco, o comentário pode parecer desproposital, com o objetivo apenas de provocar o riso. Há sim muita gratuidade, que ninguém é de ferro, mas logo percebemos que o humor e o riso afrouxam a resistência de quem ouve e introduz melhor o que é central, a situação humilhante dos operários, que fala alto: É dureza, João / É dureza, João / O mestre falou que hoje não tem vale, não / Ele se esqueceu, que lá em casa não sou só eu. O senso de humor está a serviço da denúncia, na maioria dos sambas. A própria voz, rouca e grave, “anti-voz”, na definição de Antônio Candido[1], é usada pra modular o alcance do humor, ajudando a desnaturalizar a rotina. Mesmo quando o riso não é gargalhada, o que é frequente. Assim, por exemplo, Adoniran transformou numa linda valsa um dos poemas mais tristes de Vinicius de Moraes, Bom dia, tristeza, mas acrescentou alguns versos de sua própria autoria, que declamou no começo da música. Sabe-se que, anos antes, Vinicius se irritara com os erros de português em Tiro ao álvaro, de modo que os versos de Adoniran funcionam, então, como uma espécie de resposta, redizendo o poema de Vinícius com suas próprias palavras incultas: “A tristeza é um bichinho, que pra roer tá sozinho / E como rói, a bandida! / Parece rato em queijo parmesão”. Adoniran salvou o poema de Vinicius.

Vide verso meu desterro

Para finalizar, e com risco de errar, penso que tudo em Adoniran evoca a troca de papéis. O signo do deslocamento está em tudo, em sua vida, na falsificação da certidão de nascimento para trabalhar mais cedo; na diversidade de ocupações que exerceu: serralheiro, garçom, pintor, ator, vendedor na 25 de março… Atravessa o samba, ajudando a explicar os erros propositais de português, que não é apenas uso da oralidade, da linguagem coloquial, como dizem – são erros voluntários, como “caricaturas verbais” que realçam determinados sentidos e camuflam outros, um tipo de “falsificação” da língua. Está claro, os erros chamam a atenção para si, provocam desvios e produzem estranhamento. Ele disse uma vez que errava a grafia das palavras porque gostava de “samba de favela, samba de pobre”, sugerindo, num tiro certeiro de ironia fina, que, portanto, pobre não era. Nada é estático, a começar pelo próprio Adoniran, que existia até a metade, como personagens de João Rubinato.
Espero ter conseguido demonstrar que a fixação de identidades rígidas é estranha ao universo desse artista, onde trabalhador passa por vagabundo, mulher por mariposa e cuíca, favelado por gente, tristeza por rato. Longe estamos de um elogio fácil da diversidade, tão comum em nossos dias, a tal ponto que a expressão “ponto de vista” é trocada frequentemente por “lugar”. De certo modo, o abuso da palavra revela um aspecto do espírito do tempo atual, obcecado por tornar espacial e claramente delimitada a perspectiva do outro, para que dali não se mova. Ênfase alucinada nas diferenças própria de um mundo estilhaçado, que tende a liquidar qualquer perspectiva séria de emancipação universal. Justamente, se não estiver indo longe demais, é a existência de uma tal perspectiva no repertório de Adoniran o que permite a rotatividade de papéis e qualifica o humor, que assim não escorrega para a piada de mau gosto e a baixaria. O distanciamento crítico é o que faz rir, mesmo que, por vezes, o riso não seja gargalhada. Num tempo em que a solidariedade anda em baixa – entre os de baixo – Adoniran é uma força viva, a recordar que tudo muda.
Fonte: Portal BRASIL CULTURA

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