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sexta-feira, 5 de julho de 2019

JUSTIÇA SELETIVA - Conflito na Jureia expõe desamparo e criminalização dos povos caiçaras

Uma das casas de família caiçara que foi derrubada pela Fundação Florestal

Lei que criou a Estação Ecológica da Jureia desconsiderou a presença de remanescentes de antigos caiçaras, transformando o direito das famílias em crime ambiental.

Publicado por Cida de Oliveira, da RBA

São Paulo – Sobreviventes da especulação imobiliária na década de 1970 e do malsucedido projeto de construção de usina nuclear nos últimos anos do governo militar, remanescentes de antigos caiçaras da região da Jureia, no litoral sul de São Paulo, atualmente são ameaçados pela legislação ambiental que deveria protegê-los.  Ontem (4), sem mandado judicial, agentes da Polícia Ambiental derrubaram duas casas na comunidade de Rio Verde, deixando três famílias, incluindo uma gestante, sem terem onde morar. Uma terceira casa só não foi derrubada pela resistência do caiçaras, ativistas e demais apoiadores. São pessoas que vivem da pesca artesanal e da roça que cultivam, como faziam seus antepassados. A comunidade está instalada naquela região há mais de 200 anos.

O truculento “processo de desfazimento” das casas autorizado pela Procuradoria Geral do governo de João Doria (PSDB) é considerado pelos caiçaras como mais um flanco do crescente processo de criminalização dos povos tradicionais pelo poder público.

“Vinham sendo feitas conversas mediadas pelo Ministério Público Federal, segundo as quais nada seria feito no sentido de destruir as casas. Mas fomos pegos de surpresa com a quebra do diálogo pela Fundação Florestal”, disse a presidenta da União dos Moradores da Jureia, Adriana Lima.

Truculência
Liderança caiçara, Adriana afirma que a luta não é só contra a truculência dos agentes do Estado, que “está cada vez pior”. Mas também pelo debate em torno de uma nova legislação ambiental, cuja construção inclua a participação das populações tradicionais locais. “Fomos excluídos de todo o processo legislativo, que foi construído e aprovado como se nós não existíssemos aqui há mais de 200 anos.”

“A lei vem sendo aplicada seletivamente para restringir nosso modo de vida, desconsiderando nosso papel para a conservação e defesa da natureza e para a manutenção da biodiversidade. Para o governo de São Paulo, moramos em Estação Ecológica, área totalmente restritiva à habitação, mas não revelam que a lei criada em 1986 ignorou a presença de 22 comunidades na época, tornado-as ilegais da noite para o dia.”

Integrante de diversos coletivos, a ativista avalia a legislação ambiental paulista como uma das mais atrasadas que conhece, daí a necessidade de atualização. “As leis mais avançadas garantem  a permanência dos povos tradicionais porque entendem se tratar de aliados justamente pelo modo que lidam com a natureza. São parceiros da preservação. Ninguém protege mais o meio ambiente dos que as populações tradicionais”.

Adriana destaca ainda que além da preservação ambiental, a permanência dos caiçaras nos territórios contribui ainda para a preservação cultural e da memória reconhecida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). No caso das famílias da Jureia, há ainda a manutenção da pesca artesanal, os roças, as casas de farinha.

Povos tradicionais

Embora ainda não haja legislação que trate da demarcação de territórios caiçaras, há diversos instrumentos legais e tratados internacionais que consolidam os direitos dos povos tradicionais. Os artigos 215 e 216 da Constituição Federal, a Convenção 169 da OIT, no Sistema Nacional de Unidades de Conservação e na Lei da Mata Atlântica, que prevê a utilização de recursos naturais por comunidades tradicionais.

Tanto que o defensor Andrew Toshio Hayama, da regional Registro da Defensoria Pública do Estado, havia recomendado a manutenção de diálogo no caso da comunidade Rio Verde, além da análise da concessão de termo de uso, já que um dos moradores preenche todos os requisitos, e cumprimento dos artigos 13 e 14 da Lei 14.982/13 para o reconhecimento dos territórios caiçaras.

A Secretaria Estadual de Meio Ambiente  informou à RBA, por meio de nota, que a decisão respaldada pela Procuradoria Geral do Estado se deu pelo descumprimento, pelas famílias, do embargo das construções, “tipificadas como crime ambiental conforme a Lei nº 9.605/98″.  Em meados de junho, após uma denúncia, agentes da Polícia Ambiental e da Fundação Florestal haviam  constatado a supressão de 100 metros quadrados de vegetação nativa de restinga alta, considerada o “coração da Jureia”.

O órgão informou ainda que, em 2013, a Fundação Florestal, entidade privada criada para administrar os recursos do Instituto Florestal, criou duas reservas dentro no Mosaico da Juréia  para abrigar as comunidades tradicionais da região. E que nesses locais ainda é possível construir novas unidades para habitação. Ao contrário da área do Rio Verde,  declarada patrimônio mundial da humanidade pela Unesco, com aproximadamente 60 estudos em andamento. “O local é inabitado, remoto e abriga o maior espaço preservado da Mata Atlântica no Brasil e no mundo. Portanto, não é habilitado para ocupação”.

 Comissão Arns de Direitos Humanos também entende como arbitrárias as ações naquele território. Esta semana, divulgou nota de repúdio às ações das autoridades e de apoio aos caiçaras. Confira:

Prezadas famílias caiçaras, 

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns, fundada em 20 de fevereiro de 2019, cuja missão é a promoção e defesa dos Direitos Humanos, vem por intermédio desta carta reconhecer a luta por direitos e manifestar apoio às famílias caiçaras que resistem a ações arbitrárias em territórios tradicionais sobrepostos por Unidades de Conservação de Proteção Integral desde a criação, sem consulta ou oitiva das comunidades afetadas, da Estação Ecológica da Jureia. 

_Diante da notícia de que, no dia 18 de junho de 2019, família caiçara residente no território tradicional do Rio Verde sofreu ameaça de execução de ordem administrativa de demolição e despejo por parte da Fundação Florestal, sem autorização judicial e sem garantia de direito de defesa, a Comissão Arns, externando preocupação com a situação de violação de direitos relatada, recomenda que as instituições públicas responsáveis pela ação dialoguem e consultem a comunidade afetada. 

Mais que isso, a Comissão adverte que as instâncias governamentais que administram as Unidades de Conservação de Proteção Integral criadas, por equívoco histórico da política ambientalista brasileira, sobre os Territórios Tradicionais Caiçaras na região da Jureia, observem o arcabouço socioambiental produzido a partir da Constituição Federal de 1988 e da vigência da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, marcos normativos fundantes de direitos culturais e territoriais das Comunidades Tradicionais Caiçaras. 

Por fim, além de reiterar repúdio a qualquer ofensa a direitos fundamentais de comunidades etnicamente diferenciadas, a Comissão Arns se coloca à disposição para integrar espaços de diálogo voltados à resolução pacífica do conflito, a pedido dos/as interessados/as. 

Assista matéria da TVT sobre a derrubada das casas de caiçaras na Jureia:

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