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sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Manu da Cuíca, compositora da Mangueira: “As mulheres têm que ocupar espaço no samba”

Vencedora de dois sambas seguidos na Mangueira, Manu chega este ano com a história de Cristo. Sempre ao lado do marido, o compositor Luiz Carlos Máximo, que ela diz: “Ele não é um cara que ajuda. É um cara que divide, que cria, que cuida”
Por Jlinho Bittencourt
Manuela Oiticica, conhecida como Manu da Cuíca, é a bola da vez no Rio de Janeiro. Só se fala nela. E também no seu parceiro e marido – justiça seja feita – o compositor Luiz Carlos Máximo. Ao lado dele, ela é autora do que talvez seja um feito inédito. É uma mulher que conseguiu emplacar pelo segundo ano seguido o samba enredo de uma grande escola, a Estação Primeira de Mangueira. A história por si só já seria suficiente, mas tem muito mais.
Tanto o samba deste ano – “História pra Ninar Gente Grande” – quanto o do ano que vem, “A verdade vos fará livre”, são extremamente engajados. O samba campeão deste ano foi o que fala das Marias, Mahins, Marielles, malês:
Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa, as multidões
O último escolhido conta a história de Jesus Cristo que volta à terra irmanado com os mais pobres, os moradores das favelas, assim como Ele, torturados e assassinados pelo Estado. Um enredo épico que avisa:
Favela, pega a visão, Não tem futuro sem partilha, Nem Messias de arma na mão
Manu atendeu a Fórum prontamente. Pediu algumas horas para conceder a entrevista, mas teve que recuar. Sua filhinha, de apenas um ano e dois meses teve febre. Um dia depois, com tudo resolvido e em um depoimento emocionante, ela contou em detalhes sobre sua trajetória, a parceria de vida e samba com o marido Luiz Carlos – que ela diz dividir todas as tarefas da casa e da filha – a sua carreira como escritora e, é claro, a Mangueira.
– Você já disse em algumas entrevistas que as mulheres são pouco reconhecidas nesse universo do samba. Ainda, é assim? Mesmo depois de Dona Ivone Lara, que foi precursora? Mesmo depois de você vencer com dois sambas?
Manu – Eu sou reconhecida por esse samba, pelo samba do ano passado. As pessoas que conhecem os autores sabem que eu sou uma delas, mas pra gente falar da questão da dificuldade das mulheres como compositoras, não basta pegar um ou outro caso. Eu acho que são espaços normalmente ocupados por homens, existem muitas mulheres compositoras, mas precisam existir mais. Se você pega os sambas campeões em geral deste ano, do ano passado, têm algumas mulheres, mas a maior parte é de homens, porque é um espaço onde a gente não se sente tão encorajada. É um espaço em que a gente tem que estar sempre mostrando. Não é um espaço tradicionalmente voltado pras mulheres. E eu acho que a luta é pra que se ocupe esse e outros espaços.
– Você sempre compõe com o seu marido, o Luiz Carlos Máximo? Como é dividido esse trabalho? Sai fácil ou tem muita briga?
Manu – Fazer samba juntos, sendo casado, nós somos pais também, nossa filhinha tem um ano e dois meses, é difícil. Foi difícil porque ela não tá na creche, a gente que se reveza cuidando, a gente faz um revezamento. Muito verso saiu na madrugada, entre uma mamada e outra. Muita melodia saiu entre uma troca de fralda e preparar comida. Foi bastante cansativo e difícil fazer, por conta de nós termos a mesma dinâmica em casa, de sermos parceiros e casados. Agora, tem uma coisa aí que é fundamental da minha parte. Eu só consegui fazer porque de fato eu tenho um companheiro que divide comigo todas as tarefas de casa e da maternidade e paternidade. Não é um cara que ajuda. É um cara que cria, que cuida. Então, dividir essas tarefas meio a meio, tudo no que diz respeito à casa e à nossa filha, permitiu a gente ter tempo pra compor juntos.
– A filha de vocês nasceu mais ou menos nesta mesma época no ano passado.
Manu – Isso, dois dias antes do samba do ano passado ser escolhido. O samba de 2019, que foi escolhido no ano passado. Ela nasceu numa quinta-feira e no sábado o samba foi escolhido. A gente participou, acompanhou todas as disputas, todas as eliminatórias. No dia do desfile, a gente não desfilou porque naquele momento a gente não estava assinando o samba, porque a gente tinha participado da disputa da Portela, mas depois a gente assumiu nossa autoria no samba da Mangueira e no desfile das campeãs a gente pôde desfilar. Ela estava com alguns meses. Mas toda a disputa, o samba foi feito com ela na barriga e nas eliminatórias ela estava ali. Ela é pé quente e Mangueirense, até porque nasceu no dia do aniversário do Cartola e porque ela também fez os pais dela bicampeões dessa tão difícil e honrada disputa de samba.
– Depois de tirar a poeira dos porões vem esse enredo agora, que é comovente. Ele conta a história de um Cristo brasileiro, pai carpinteiro desempregado, mãe Maria das Dores Brasil. Em um determinado momento vocês falam de um messias de arma na mão. Não dá pra não ligar com o nome do meio do presidente. Teve isso?
Manu – Sobre o samba em si, que a Mangueira reivindica um dos personagens mais emblemáticos da escola, e reivindica a sua história, a história de fato de Cristo tentando resgatar um pouco o que foi isso porque há uma avaliação que, ao longo desses milhares de anos, a história de Cristo foi muitas vezes sequestrada por projetos de poder, sequestrada pra poder justificar coisas que certamente Jesus Cristo não concordaria, então é um enredo e um samba enredo que joga luz um pouco nessa história e tenta fazer uma reflexão com os dias de hoje. Cristo foi um sujeito que nasceu pobre e lutou por justiça social, por diversidade, por inclusão, brigou contra o Estado Romano, foi torturado e assassinado pelo Estado. E essa não é uma história tão diferente em termos de violência como as que acontecem com parte da juventude dessa cidade pobre que também sofre nas mãos do Estado. Basta você ver qual é a expectativa de vida de um jovem homem negro morador de favela no Rio de Janeiro. Não é muito diferente da quantidade de anos que viveu Cristo. Então, a proposta do enredo é pensar onde estaria Cristo hoje, onde teria nascido, como Ele viveria, ao lado de quem ele estaria lutando e, principalmente, quem seriam os seus algozes, quem seriam as pessoas que iriam assassiná-lo.
– São os “profetas da intolerância”.
Manu – Isso, a gente os chama no samba de: “os profetas da intolerância”, que cravejaram novamente o corpo de Cristo por não aceitar a luta por justiça, por diversidade. Essa é a proposta do enredo e é por aí que a gente vai no samba e aí tem uma parte do meio do samba em que Cristo diz: “Favela pega a visão, não tem futuro sem partilha nem messias de arma na mão”. É a ideia de que o futuro precisa ser partilhado, a humanidade precisa aprender a conviver de forma coletiva. E Cristo, como um messias pra algumas religiões, tá muito tarimbado pra dizer que tá cheio de messias enganadores na história da humanidade e a gente não pode se iludir com isso.
– Você teve um lindo samba, o “Pra matar preconceito”, puxando o álbum “É Preta”. Você tem bastante coisa fora do universo do samba enredo, pretende fazer discos, cantar?
Manu – Eu tenho 20 anos de rodas de samba como percussionista e também como compositora. Tenho mais ou menos umas 20 músicas gravadas. Tem um disco da Marina Iris que é todo feito com músicas minhas e do meu parceiro, o Rodrigo Lessa. Não faço música só com o Máximo. Tenho umas cinco ou seis músicas em blocos de carnaval e em disputa de samba enredo. Eu participei de cinco disputas: na Canários das Laranjeiras, na Portela, na Mangueira. Estive em quatro finais e ganhei duas vezes. Agora, vocês não vão ouvir um disco meu cantando, pra sorte de vocês! Eu sou uma péssima cantora, desafinada, então eu deixo pra quem sabe essa parte de cantar, fazer melodias. Eu também nunca faço as melodias das músicas, sempre as letras.
– Você lançou junto com outros 19 poetas, entre eles o Aldir Blanc, o livro “Porremas”. Fala um pouco sobre esse projeto e conta se tem algum livro solo à vista.
Manu – Isso. Eu também tenho contos, crônicas e poesias publicadas, mais ou menos uns dez textos publicados em coletâneas. Dentro desses tem o “Porremas”, que eu também participei da organização, junto com o Diego Barbosa e o Rafael Maieiro. É um livro que a gente lançou em meados de 2018, e ele têm poesias de bar. Poesias que têm a participação do Aldir Blanc, com poemas inéditos dele. Ele foi relançado agora, teve um debate em Alagoas, na Bienal que foi muito legal poder falar de novo sobre ele porque a música, poesia, literatura estão também nas esquinas, nas rodas de samba, nas manifestações, na coletividade, tá em todos os espaços e a gente fica procurando poesia pelo meio da rua.
– E um livro só seu, quando sai?
Manu – Eu tenho reunidos alguns textos que pensei em fazer uma publicação. Isso foi junto com a maternidade, eu adiei um pouquinho essa ideia, cheguei a mandar pra algumas editoras, mas acabei não avançando nessa conversa, mas tenho sim. Tenho livros, não tenho o disco que eu vou cantar, mas um livro eu tenho pensado em publicar sim. Mas uma coisa de cada vez. Tá uma correria danada!
– Eu sei que você deve ouvir essa pergunta toda hora, mas mesmo assim vou fazer. Você é parente do Hélio Oiticica?
Manu – Ah, meu tataravô era irmão do bisavô dele, então é um parente distante. Mas é um orgulho, porque o Oiticica é um grande artista plástico, que também teve uma ligação com a Mangueira, tem essa coincidência aí.

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