O Ministério Público Federal na cidade de Santos, litoral de São Paulo, recebe nova leva de documentos que implica a participação da Companhia Docas de Santos (CDS), atual Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), na repressão a trabalhadores durante o período de ditadura militar – 1964-1985.
A CDS financiou o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipês), conforme mostra recibo apresentado, no valor de três milhões de cruzeiros, relativos a “contribuição” para os meses de janeiro a junho de 1965.
Além deste documento, o inquérito civil que apura a responsabilidade da empresa portuária e sua direção na violação de direitos humanos durante o período de repressão, iniciado em 2018, voltou a caminhar.
O procurador Ronaldo Ruffo Bartolomazi retomou sessões para ouvir trabalhadores e pessoas ligadas à direção da companhia.
Está sendo ouvida Elaine Bortone, pesquisadora que estudou a vinculação do Ipês com o golpe de Estado de 1964 e o papel das empresas no apoio à repressão.“Muitas empresas contribuíam de forma dissimulada – porém deixaram os rastros – e outras abertamente como a Companhia Docas que além de financiar, assumiu cargos de direção e planejamento no Ipês”, denuncia Antônio Fernandes Neto, ex-estivador, pesquisador e uma das vítimas que encabeça a representação contra CDS.
Também já foi ouvido Nobel Soares de Oliveira, dirigente da greve portuária de 1980.
A denúncia inicial mostra que dirigentes do Porto de Santos, o maior complexo portuário da América Latina, utilizaram a estrutura da companhia para colaborar com o aparelho de repressão durante a ditadura militar.
Os diretores do complexo permitiram a prisão de funcionários dentro do próprio porto, perseguiram trabalhadores com atuação política e sindical, além de facilitarem a tortura de servidores, produzindo informações e relatórios sobre os trabalhadores, depois encaminhadas aos órgãos militares.
“Eles sabiam quem eram os trabalhadores comprometidos com a democracia. Para criar um clima de terror dentro da companhia, prendiam a pessoa, torturavam ela. Criou-se constrangimento entre todos e tudo, a partir de ação violenta da polícia portuária”, explica Neto.
O recibo do Ipês, nº 4966, no valor de três milhões de cruzeiros, referente a contribuição para o primeiro semestre de 1965, comprova o engajamento da Companhia Docas no financiamento do aparelho de repressão, destaca o ex-dirigente sindical portuário.
O documento passará agora por análise e autenticação por historiadores.
O valor “doado” ao Instituto era equivalente, por exemplo a 50% do valor de um apartamento com um dormitório, sala, living, cozinha, hall de entrada, banheiro e área de serviço na praia de Embaré, em Santos, na avenida de frente para o mar.
De acordo com imobiliárias dessa região, um imóvel deste tipo, já mobiliado, custava 6 milhões de cruzeiros em janeiro de 1965.
Também equivale a valor menor que o preço de um outro apartamento com living-dormitório, cozinha, banheiro, área de serviço e garagem, também de frente ao mar, na Praia Grande, que era vendido por 2,5 milhões à época.
Embora fundado em 1961, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipês) desempenhou cruzada para atuar em ampla variedade de ações para penetrar em todas as classes sociais nesse período.
Na ditadura, o Ipês criava publicações, agia como lobby no Congresso Nacional, desenvolvia cursos, com a criação da Universidade do Trabalho, por exemplo, além de incentivar cursos de alfabetização de adultos, preparação de trabalhadores em sindicatos. Tinha até programas em rádios e televisão.
O Ipês foi criado para funcionar como uma agência de inteligência, tendo como ponto de partida a Guerra Cultural e Psicológica de acordo com os princípios do combate ao totalitarismo.Não era propriamente uma agência anticomunista, aliás, como grande parte da literatura historiográfica brasileira tenta argumentar: era muito mais do que isto. Possuía no totalitarismo um conceito de mobilização e se organizava para uma batalha ideológica, cultural e psicológica, explica Elizabeth Cancelli, no livro “O Brasil na guerra fria cultural – o pós-guerra em releitura”, de 2017.
O inquérito que voltou a tramitar no MPF santista tem prazo final para conclusão em 28 de julho deste ano.
No ano passado, ação semelhante em São Paulo envolvendo a Volkswagen foi concluída e definiu acordo milionário de reparação aos trabalhadores pela empresa ter colaborado com a ditadura.
A montadora de automóveis reconheceu cumplicidade com os órgãos de repressão brasileira.
Entre as diversas ações de repressão e perseguição desempenhadas pela CDS está a prisão de trabalhadores.As forças militares utilizaram um navio, chamado Raul Soares, atracado no porto santista entre abril e outubro de 1964.
À época, o coronel Erasmo Dias havia declarado que a finalidade da prisão embarcada era “prender e humilhar” os empregados da companhia.
Documento encontrado no Arquivo Nacional em Brasília também comprova que a comissão de oficiais da Marinha de Guerra, encarregada do “IPM (Inquérito Policial Militar) da Orla do Cais”, realizou seus trabalhos dentro de salas da Divisão de Pessoal da Companhia Docas de Santos na década de 1960.
O trabalho consistia em listar os servidores portuários que, no entender dos órgãos de repressão, estavam atrelados a partidos de esquerda.
A CDS também fornecia veículos da empresa para realização de detenções de servidores e ex-funcionários.
A repressão e monitoramento realizados pela CDS possibilitou prisões em massa de funcionários.Pelo menos 250 pessoas passaram por prisão, tortura e constrangimento, relata a representação base da abertura do inquérito civil pelo Ministério Público Federal de Santos.
A Codesp, hoje denominada Autoridade Portuária – Santos Port Authority (SPA), empresa pública fundada em 1980, tem informado por meio de nota que “desconhece informações a respeito de eventuais atos de repressão que teriam sido praticados pela Companhia Docas de Santos (CDS), empresa privada que administrou o Porto de Santos, em regime de concessão, até o ano de 1980”.
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