Por Gilvander Moreira1
Segundo o censo demográfico do IBGE1 de 2010, resistem no
Brasil cerca de 817.963 indígenas. Desse total, 502.783 resistem no campo, nas
aldeias, e 315.180 foram desterritorializados por terem sido expulsos de seus
territórios originários e, por isso, resistem nas periferias das grandes
cidades. Só na Região Metropolitana de Belo Horizonte estima-se que existem
mais de 10 mil indígenas em contexto urbano.
Desde o dia 22 de agosto último (de 2021), mais de
6 mil indígenas, de 178 etnias, acamparam em Brasília no Acampamento “Luta pela
Vida”, porque a tese do marco temporal está em discussão no Supremo Tribunal
Federal (STF), que já adiou o seu julgamento várias vezes. Dia 1º de setembro
de 2021 deve continuar o julgamento no STF da tese do marco temporal, com
“repercussão geral” reconhecida, que definirá se as demarcações de terras
indígenas no país continuarão ou não, ou pior, se poderão ser canceladas várias
demarcações já feitas. A partir de um caso concreto de conflito entre o Povo
Indígena Xokleng e o Estado de Santa Catarina, pela “repercussão geral” já
estabelecida pelo STF, o julgamento servirá de decisão que será parâmetro para
todas as demarcações de terras indígenas no Brasil. Logo, é muito sério o que
está em disputa no STF.
O que é a tese do marco temporal? Trata-se de uma farsa perpetrada no Congresso Nacional pela bancada ruralista em 2009, plantada no STF, durante o julgamento da Terra Indígena (TI) Raposa Terra do Sol situada em Roraima: a inconsistente tese que preconiza que os direitos territoriais dos Povos Indígenas só teriam validade se eles estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988 – data da promulgação da atual Constituição Brasileira. Falar em marco temporal é uma jogada, uma ficção jurídica de quem tem grandes interesses econômicos nos territórios indígenas: a turma do agronegócio, dos madeireiros, garimpeiros, latifundiários e empresários do campo, todos os que são adeptos do ídolo mercado, os que não amam o próximo e nem as próximas gerações, pois só pensam em lucrar e acumular capital, mesmo que deixando terra arrasada com sua agricultura mecanizada para produzir commodities para exportação. Marco temporal é marca do atraso, o nome elegante do genocídio.
O que os capitalistas pretendem com a legitimação
da tese do marco temporal? No artigo “O absurdo do ‘marco temporal’ e a
violação dos direitos originários”, em parceria com a antropóloga e arqueóloga
Alenice Baeta, respondemos a questão acima: “Pretendem anistiar os crimes
cometidos contra os Povos Tradicionais relacionadas à escravidão, torturas,
confinamentos em pequenos territórios, aprisionamentos, exílios, remoções
forçadas, desterros, separação de familiares, assassinatos, apropriações
indevidas de territórios tradicionais, desconsiderando assim as noções de
reparação histórica, de dívida histórica com os Povos Originários, de resguardo
cultural e imemorial, de direitos congênitos, imprescritíveis, intangíveis e da
posse coletiva da terra.”
O argumento do marco temporal é inconstitucional e
inconvencional, ferindo, em especial, os artigos 231 e 232 da Constituição2, além de desrespeitar a
Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) n. 169, de 1989,
ratificada pelo Brasil, que consagra os direitos culturais e territoriais, bem
como a autodeclaração, como instrumento primaz da identidade étnica, além do
reconhecimento das diferentes formas de ocupação, manejo e uso da
terra. Segundo a teoria do indigenato, a terra é “originária” e,
portanto, anterior à Constituição do Brasil, independente da data de
comprovação da terra.
A tese do marco temporal é inconstitucional,
porque, perseguidos, massacrados e expulsos, muitos Povos Indígenas não estavam
em seus territórios originais em 5 de outubro de 1988, porque foram arrancados
deles. Outros foram arrancados depois, por grileiros, latifundiários,
garimpeiros e jagunços. Marco temporal serve ao agronegócio, que é devastador
ambientalmente, desertificador dos territórios, concentrador da propriedade
privada da terra, produtor da epidemia de câncer e da fome, asfixiador da
agricultura familiar camponesa agroecológica, exterminador do futuro da
humanidade.
Derrubar a tese do marco temporal se tornou necessário também por uma questão de sobrevivência da humanidade, pois já sabemos que foi o exagero de desmatamento que fez eclodir a pandemia da covid-19, já está comprovado que o agronegócio e seus aliados promovem desertificação dos territórios e desmatamentos sem fim. Já está demonstrado que nos territórios indígenas se pratica preservação ambiental. É preciso recordar também que com a demarcação dos territórios indígenas, as terras não passam a ser de propriedade dos Povos Indígenas, que têm apenas o direito de usufruto não podendo vender a terra. As terras indígenas são da União, bem comum do povo. Portanto, derrubar o marco temporal é também caminho para frear a privatização e a grilagem de terras no Brasil.
Caso não seja derrubada a tese do marco temporal no
STF, o Estado não mais demarcará terras indígenas e várias das demarcadas
poderão ser desmarcadas e, assim, a ausência de demarcação de terras, causará,
no médio e longo prazo, um verdadeiro etnocídio e continuará o genocídio
indígena no nosso país. Portanto, o justo e necessário é que o STF julgue
derrubando a tese do marco temporal, porque é absurdo, inconstitucional e
violação aos direitos dos Povos Indígenas/Originários!
31/08/2021
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 – Demarcação de Terras Indígenas, com Shirley Krenak, Moema Viezzer e Célio Turino
2 – STF Urgente. Relator Fachin reconhece a tutela dos territórios indígenas
3 – #LutaPelaVida – Igreja no Brasil reafirma seu compromisso com a causa indígena. Marco temporal, NÃO!
4 – AO VIVO. Semana de protestos no Brasil começa com os Povos Indígenas em Brasília.
5 – Em MG, 17 Povos Indígenas com 16 mil pessoas resistem na luta pelos seus territórios. 09/10/2020
6 – STF definirá em julgamento critérios de demarcação de novas terras indígenas. Fantástico. 24/5/2020
1 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Art. 231. São reconhecidos aos índios
sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º São terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as
necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições. § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a
sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo,
dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º O aproveitamento dos recursos
hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das
riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização
do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada
participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º As terras de que
trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas,
imprescritíveis.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e
organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus
direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do
processo.
1 Frei e padre da Ordem dos carmelitas;
doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR;
bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício
Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do
CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação
Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres
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