Há 126 anos, em 9 de outubro de 1893, nascia Mário de Andrade – o escritor e ativista cultural que melhor encarnou a chamada “fase heroica” do Modernismo brasileiro. Ao longo de sua vida pública – e particularmente ao refletir sobre a “aristocrática” Semana de Arte Moderna –, Mário incorporou cada vez mais preocupações com a cena política. Nesse percurso, fez referências elogiosas às ideias e práticas comunistas, sobretudo à experiência soviética.
“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta”, declarou Mário de Andrade (1893-1945), num de seus versos mais conhecidos. Em outro poema, o escritor paulista, um dos principais líderes do modernismo brasileiro, parece deixar a receita para decifrá-lo: “É só tirar a cortina / Que entra luz nesta escurez”. Com uma ressalva: “Para quem me rejeita, trabalho perdido explicar o que, antes de ler, já não aceitou”.
A despeito de tantas pistas, mesmo quem o aceitou não deu conta, pelo menos até hoje, de retratar em definitivo o autor de Pauliceia Desvairada (1922), Amar, Verbo Intransitivo (1927) e Macunaíma (1928). Decorridos 126 anos de seu nascimento e 74 anos de sua morte, Mário é o segundo escritor mais estudado nas universidades do Brasil, atrás apenas de Machado de Assis (1839-1908). Só agora, porém, ganhou um trabalho biográfico de fôlego, o recém-lançado Em Busca da Alma Brasileira – Biografia de Mário de Andrade (Estação Brasil, Sextante), do jornalista Jason Tércio.
Desde que iniciou a pesquisa para seu livro, no final da década passada, Tércio dizia saber onde se metia. A vida privada de Mário era um mistério cercado de rumores por todos os lados. A vida pública já foi alvo de milhares de artigos jornalísticos e trabalhos acadêmicos. Dissecar uma e outra é uma aventura. Relacioná-las e interpretá-las com equilíbrio, uma epopeia. Em Busca da Alma Brasileira cumpriu as duas missões com louvor!
Enquanto a biografia sofria adiamentos e não vinha à tona, um dos 300 ou 350 Mários de Andrade mereceu atenção especial. A figura do Mário gestor, com destaque para sua atuação à frente do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo (1935-1938), sobressaiu nesta segunda década do século 21.
Para isso contribuíram, decisivamente, três livros publicados nos últimos anos: Um Poeta na Política – Mário de Andrade, Paixão e Compromisso, de Helena Bomeny (Editora Casa da Palavra, 2012); Eu Sou Trezentos – Mário de Andrade: Vida e Obra, de Eduardo Jardim (Edições de Janeiro, 2015); e, em especial, Me Esqueci Completamente de Mim, Sou um Departamento de Cultura, de Carlos Augusto Calil e Flávio Rodrigo Penteado (Imprensa Oficial, 2015). Sem contar a Ocupação Mário de Andrade, promovida em 2013, no Itaú Cultural, em São Paulo, ressaltando os feitos do escritor “nos campos da gestão e da política cultural, em tempos nos quais esses termos não eram usuais”.
Semana de 22
Foram 18 anos desde o ingresso do escritor paulista na vida pública – em 1917, com o livro Há uma Gota de Sangue em cada Poema – até sua posse do Departamento de Cultura, marco zero do “Mário gestor”. O livro de estreia coincidiu no tempo com a Revolução Russa, mas o poeta dizia estar sob o impacto da 1ª Guerra Mundial.
Também em 1917, Mário de Andrade saiu em defesa da artista plástica Anita Malfatti, cuja Exposição de Pintura Moderna, em São Paulo, acendeu o reacionarismo da crítica. A mostra foi um divisor de águas na formação do escritor, que confessou ter aderido ao modernismo por influência do trabalho de Anita: “Devo a revelação do novo e a convicção da revolta a ela e à força de seus quadros”.
Mas é com a Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, que Mário de Andrade emerge como a liderança máxima do movimento modernista. Seu engajamento foi decisivo não apenas para articular e promover o evento – mas também para lhe garantir lugar na posteridade.
Um lugar e uma posteridade que não foram naturais, conforme aponta Marcia Camargos em Semana de 22 – Entre Vaias e Aplausos (Boitempo Editorial, 2002). “Afinal, por que um evento que provocou prejuízo considerável a seus organizadores, foi difamado por boa parte da imprensa da época e recebeu mais vaias do que aplausos continua despertando tanto interesse?”, questiona a autora.
O fato é que a Semana foi beneficiada com o passar do tempo. O que prevalece hoje, na opinião de Marcia, são estudos “em geral consagradores” a respeito do evento. E, se o estalo modernista de 1922 sobreviveu, foi graças, em boa medida, à militância de seus dois protagonistas – os Andrade, Mário e Oswald, amigos e parceiros que, sete anos depois do evento, viraram desafetos.
A herança da Semana passa por ambos. Da negação comum do passadismo, cada um desses escritores, à sua maneira, passou a seguir seu próprio itinerário modernista, inaugurando as primeiras vertentes do movimento. “Enquanto Oswald de Andrade era o devasso, o piadista, Mário era o ‘scholar’, o erudito, o monumento moral”, compararam José Geraldo Couto e Mario Carvalho, em ensaio de 1993.
Para Jason Tércio, Mário representava o “pensador participante”, e Oswald fazia as vezes de “agitador”. Entrevistado pelo Valor Econômico em 2012, Tércio garantiu que Mário cuidou melhor que Oswald do patrimônio de 1922: “Foi ele quem deu sequência às ideias da Semana, quem mais se empenhou para manter acesa a fogueira, participando dos debates posteriores com artigos na imprensa e palestras, ajudando a fundar revistas, escrevendo ensaios e pondo em prática, nos seus textos, todo o ideário modernista”.
Autocrítica
É uma meia-verdade. Tércio desconsidera que, no pós-1922, poucas investidas contra a Semana foram mais demolidoras do que o balanço feito pelo próprio Mário de Andrade em 1942, quando o evento completou duas décadas. A autocrítica do escritor começou em fevereiro, numa série de quatro artigos para o jornal O Estado de S. Paulo. Continuou dois meses depois, na conferência “O Movimento Modernista”, lida por Mário em 30 de abril, para uma plateia de estudantes que lotavam a Biblioteca do Itamaraty, no Rio de Janeiro.
Das vaias à consolidação do movimento, o escritor inferiu que o modernismo não foi mais que “um abandono consciente de princípios e de técnicas”, “uma revolta contra a intelligentsia nacional”. Outros slogans – escreve ele – devem ser descartados. “Quanto a dizer que éramos antinacionalistas, é apenas bobagem ridícula”, comenta Mário, assumindo que “o espírito e as modas foram diretamente importados da Europa” – e que “o movimento renovador era nitidamente aristocrático”.
Sobre os participantes da Semana, nada muito melhor. “Éramos uma arrancada de heróis convencidos, uns hitlerzinhos agradáveis”. E mais: “Vivemos uns seis anos na maior orgia intelectual que a história artística do país registra”, com “alguma patriotice e muita falsificação”.
No intervalo de pouco mais de dois meses entre os artigos no Estadão e o discurso no Itamaraty, Mário acentua a severidade de sua autorreflexão. Mesmo alegando não ser, por natureza, um “político de ação”, o escritor expôs o incômodo. Seu tempo era a “idade política do homem”, à qual ele tinha o dever de servir. Mas a Semana de 1922, na contramão de sua época, falhou ao ficar indiferente à cena nacional e aos segmentos populares.
De resto, o movimento era heterogêneo e incluía artistas com posições políticas abertamente conservadoras – caso de Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo –, o que dificultava certas tomadas coletivas de posição. “Fomos bastante inatuais. Vaidade, tudo vaidade”, resumiu Mário.
Ácido, ele equiparou seus pares a grandes artistas da Antiguidade que tiveram notoriedade, mas rebaixaram “a vida humana”, na medida em que nada fizeram para combater as mazelas vigentes: “Nos períodos de maior escravização do indivíduo, Grécia, Egito, artes e ciências não deixaram de florescer”.
“Caretas para a máscara do tempo”
No plano pessoal, a desilusão é ainda maior. “Chego, no declínio da vida, à convicção de que faltou humanidade em mim. Meu aristocratismo me puniu. Minhas intenções me enganaram. Quando muito, fiz de longe umas caretas para a máscara do tempo, o que não me satisfaz (…). Tendo deformado toda a minha obra por um anti-individualismo dirigido e voluntarioso, toda a minha obra não é mais que um hiperindividualismo implacável! E é melancólico chegar assim ao crepúsculo, sem contar com a solidariedade de si mesmo.”
O Mário de Andrade de 1942, volta e meia tachado como “maduro”, era na realidade um ser humano atormentado por problemas pessoais (crises financeiras, alcoolismo) e fragilizado diante de fatores externos (o Estado Novo, a Segunda Guerra Mundial). Como festejar o modernismo se os avanços alcançados nas artes e na cultura não se refletiam no dia a dia? “Os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição. (…) Façam ou se recusem a fazer arte, ciência, ofícios. Mas não fiquem apenas nisso, espiões da vida, camuflados em técnicos de vida, espiando a multidão passar. Marchem com as multidões!”
Se deixasse a modéstia de lado, Mário poderia citar sua passagem pelo Departamento de Cultura como exemplo do que é marchar ao lado do povo. Mesmo sem experiência no serviço público nem vínculo com o grupo político do prefeito Fábio da Silva Prado e do governador Armando Sales de Oliveira, o escritor teve plena autonomia para dirigir o novo órgão.
O contexto lhe favorecia. Com a Constituição de 1934 e o anúncio de eleições para a Presidência da República em 1938, as elites paulistas acreditavam poder, finalmente, dar o troco em Getúlio Vargas e retomar a hegemonia perdida com a Revolução de 1930. “A ideia era fazer da experiência paulista o laboratório de um amplo projeto de alcance nacional, no caso da vitória de Armando Sales de Oliveira na eleição presidencial”, explica Eduardo Jardim, em Mário de Andrade – A Morte do Poeta (Editora Civilização Brasileira, 2005).
Nenhum daqueles projetos-laboratório foi mais bem-sucedido que o Departamento de Cultura. De 1935 a 1938, Mário de Andrade liderou uma gestão criativa e transformadora, que abriu as portas do Teatro Municipal para a população pobre e construiu parques infantis. Os ônibus-biblioteca se alastraram. Instituições como a Discoteca Municipal e a Sociedade de Etnografia e Folclore foram criadas. Com as Missões de Pesquisas Folclóricas, pesquisadores de São Paulo foram ao Nordeste para fazer o registro de elementos da cultura popular.
Aos proletários
É curioso notar como Mário de Andrade imprimiu uma rara sensibilidade social às ações do Departamento. A preocupação aberta com a formação do “proletariado” norteou a concepção de projetos como as Casas de Cultura Proletária e os Concursos de Arte Proletária. Além disso, os parques infantis eram necessariamente implantados em bairros operários, como a Lapa e o Ipiranga, com o objetivo de levar recreação e lazer aos “filhos dos trabalhadores”.
Orgulhoso de suas conquistas, o escritor alimentou uma imensa gratidão ao prefeito Fábio Prado. Em correspondência ao poeta e amigo Carlos Drummond de Andrade, Mário diz que tinha tudo para ser preterido, já que pesava contra ele a acusação de ser “comunista”.
Do Partido Comunista do Brasil, fundado em 1922, Mário nunca se aproximou. Sua única filiação, influenciada pela atividade política do irmão Renato, foi ao Partido Democrático. Mas as poucas referências do autor às ideias e práticas comunistas foram invariavelmente elogiosas. Logo no início do artigo “Comunismo”, publicado no Diário Nacional em 30 de novembro de 1930, Mário ataca as variantes anticomunistas em curso no País. “Está se dando no Brasil um movimento em torno da palavra Comunismo que é dum ridículo perfeitamente idiota”, opina. “Comunismo pra brasileiro é uma espécie de assombração medonha.”
O escritor denunciava também a campanha contra a incipiente experiência soviética: “Os países capitalistas têm feito tudo não só pra ocultar da humanidade a Rússia verdadeira, como inda têm feito tudo pra prejudicá-la até internamente”. O Brasil, de acordo com Mário, não estava imune a essa ofensiva. “Me arde ver o susto brasileiro ante esse monstro de palco, inventado pela malvadeza de uns e a ignorância de outros.”
Em 1933, ao responder a um questionário da editora norte-americana Macaulley & Co, Mário voltou a surpreender. “Minha maior esperança é que se consiga um dia realizar no mundo o verdadeiro e ignorado Socialismo. Só então o homem terá o direito de pronunciar a palavra ‘civilização’.”
Numa carta a Oneyda Alvarenga, Mário completa: “Não admito integralmente o marxismo e sinto na vida humana uma porção de causas e de imponderáveis que produziriam os efeitos. Mas incontestavelmente o marxismo contém uma enorme parte de verdade que hoje nem é marxista mais porque incorporada ao conhecimento geral, à verdade humana. Coisas que ninguém discute mais”.
Os pensadores contemporâneos voltaram ao assunto. Moacir Werneck de Castro – que conviveu com Mário nos três anos em que o escritor paulista morou no Rio de Janeiro (1938-1941) – lançou Mário de Andrade – Exílio no Rio (Editora Rocco, 1989), vigoroso ensaio sobre o amigo. “Mário jamais pretendeu assimilar o marxismo, mas utilizava conceitos marxistas como instrumentos de análise e de conhecimento da realidade”, ponderou Werneck. Em Intelectuais Brasileiros e Marxismo (1991), Leandro Konder diz haver em Mário um “interesse (desconfiado porém simpático) pelo comunismo”.
Em 1945, já prestes a morrer, o escritor paulista arrisca, em nome da paz mundial, uma momentânea apologia do realismo soviético e da arte engajada contra o nazismo – mas como complemento (e não oposição) ao modernismo. Interpretando Mário, Konder conclui que “a cultura não pode resolver questões que a vida não resolveu: o que ela pode (e precisa) fazer é nos proporcionar maior familiaridade com elas”. Ajudar-nos a enxergar nossas interrogações talvez seja, justamente, a única marca onipresente nos 300 ou 350 Mários de Andrade.
* André Cintra, jornalista e escritor, é editor do Prosa, Poesia e Arte (seção cultural do Portal Vermelho). Este texto se baseia em artigo publicado originalmente na revista Princípios, nº 126, de agosto/setembro de 2013).
Fonte - Portal BRASIL CULTURA
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