Impossível dissociar a produção da cultura da vida das cidades, locus natural onde se dá o encontro do pensamento com a criação. A urbanística da Grécia Antiga, pelo desenho espacial da centralidade das ágoras, permitia que cultura e política, como manifestações simbióticas, traduzissem a vida social de seus cidadãos na polis. A democracia direta – excluídos os escravos, não podemos esquecer – garantia espaços livres para o debate político, a comunhão de sentimentos e a troca de experiências, bases essenciais para a construção da cultura e da arte.
A cidade do Rio de Janeiro, até meados do século passado, possuía sua ágora: a Praça Marechal Floriano ou Cinelândia, composta pelo poder político – antigo Senado, demolido arbitrariamente pelas obras do metrô, e o Palácio Pedro Ernesto, a Câmara de Vereadores; o Poder Judiciário – o Supremo Tribunal Federal; o poder cultural erudito – a Biblioteca Nacional, a Escola de Belas Artes, o Theatro Municipal; e o popular – a Cinelândia com seus inúmeros cinemas e teatros a caracterizar a cultura de massas em nosso país.
O que se quer aqui dizer é que as centralidades não se organizam espacialmente de maneira aleatória. Ao contrário, existe uma lógica e um simbolismo expressos na localização das edificações construídas e suas relações com o uso dos espaços públicos. Quando esses marcos são fortes e significativos, permanecem no imaginário de seus habitantes, a despeito de novos planos urbanísticos que sejam implantados.
A Cinelândia é a confirmação disso. Ela permanece como o espaço do encontro das multidões, palco dos dramas políticos e sociais da população, apesar de todas as alterações urbanísticas sofridas, do esvaziamento econômico, político e cultural da cidade, da transformação dos veículos de comunicação da cultura de massas – ontem, os cinemas e teatros populares; hoje, a informática e as redes de televisão, herdeiras diretas da radiodifusão.
As praças, as ruas são locais em que se dinamizam as experiências criativas – as ditas alta e baixa culturas se retroalimentam, criando novos arquétipos simbólicos de cada época e, de certa forma, contribuindo para a formação da mitologia brasileira, isto é, do espírito nacional.
Ali, o enlace presencial com o outro ocorre em tempo real, com a potência humana representada pela pulsão do encontro entre as pessoas e a criação de fatos político-culturais, e onde a cultura popular, vinda do chão multirracial, floresce e constrói o caráter de uma nação.
Mais ainda, é nesse convívio coletivo, a despeito do uso de novas tecnologias, que se deve apostar na contínua construção da identidade nacional. O ato de criação pode ser solitário e individual, mas todo criador precisa beber do caldo cultural de seu tempo. Machado de Assis, talvez o maior de todos os escritores brasileiros, foi um profundo conhecedor dos hábitos, dos costumes e das gentes da cidade de sua época.
É de grande fertilidade cultural que grupos étnicos e de classe não se estratifiquem em guetos, puros, petrificados. Muito ao contrário, a riqueza da cultura se dá quando ocorre a apropriação antropofágica e encantatória do saber e do fazer do outro, imprimindo sua própria criatividade à invenção individual ou coletiva.
A cultura, como a língua pátria, não pode ser congelada. Viva, ela incorpora novas linguagens vernaculares, alimentando a permanente evolução da história de um país. A compreensão e a aceitação desse processo, muitas vezes transgressor, eleva a arte, braço visível da criação, a nos emocionar e a fazer entender a vida e suas mutações.
Neste momento, é necessário um novo projeto nacional que reinterprete a história política, cultural e social de nossa gente. Decerto ele nascerá dos aglomerados urbanos, a afirmar que cultura e cidade são siamesas em suas gênesis. A morte de uma significa a inviabilidade da outra.
ADIR BEN KAUSS*
* Arquiteto e urbanista
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